Você viu o caso da atriz Alessandra Negrini, que se fantasiou de índia para pular o pré-Carnaval e foi criticada acerbamente nas redes por ter praticado o delito de “apropriação cultural”? Os internautas chegaram a julgá-la a fim de decidir se ela seria “cancelada” ou não. Esse cancelamento é um boicote virtual imposto a quem não se comporta conforme as normas dos novos moralistas. Eventuais patrocinadores do condenado são instados pela malta em fúria a abandoná-lo, e a vítima é insultada até rastejar e pedir clemência.
Repito, pois, a pergunta: você viu esse caso? Se não viu, dê uma olhada. Porque é exatamente esse tipo de evento que explica um homem como Jair Bolsonaro na Presidência da República.
Entenda: há 15 ou 20 anos, a eleição de um político como Bolsonaro para um cargo do Executivo seria piada no Brasil. Ele se elegeu reiteradamente para a Câmara porque atuava em um escaninho específico – Bolsonaro era, na prática, o único que, depois da redemocratização, defendia os direitos dos militares. Sua consagração foi um artigo que escreveu para a revista Veja, em 1986, sob o título “O salário está baixo”. No texto, nenhuma profundidade, além de um reles pedido público de aumento de soldo. Mas foi o que bastou para torná-lo herói das mulheres, dos pais e dos filhos dos militares, porque, de fato, naqueles anos, ninguém parecia se importar com a categoria. Depois da queda da ditadura, os militares só foram sair das sombras nos anos 2000, quando o Brasil liderou a missão da ONU no Haiti.
Eleito deputado pela família militar, Bolsonaro foi um inexpressivo. Ninguém se importava com ele, até que seu lado, digamos, folclórico começou a aparecer em questões como a da “apropriação cultural” de Alessandra Negrini. De forma paulatina e crescente, Bolsonaro surgiu como um homem que não tinha medo de enfrentar a patrulha politicamente correta. Ele falava o que o homem comum tinha vontade de falar ante a censura comportamental. Assim, representou um alívio para muita gente que queria contestar os novos moralistas, mas tinha medo.
Há quem diga que os que criticam o politicamente correto são, exatamente, aqueles que praticavam bullying, que discriminavam minorias. Esses, agora, estariam indignados com sua perda de poder. Trata-se de uma redução. O que está acontecendo não só no Brasil, mas em todo o Ocidente, não é uma revolta do “homem-branco-rico-hétero” com a diminuição do seu espaço. É um movimento hegeliano de parte da sociedade, incluindo enorme pedaço das minorias, em repulsa aos incômodos do julgamento moral. É uma reação natural do ser humano, algo quase físico: se um lado exerce muita pressão, o lado oposto se agiganta em idêntica proporção.
Bolsonaro no Brasil e Trump nos Estados Unidos são subprodutos da arrogância intelectual das esquerdas, que sempre se acreditaram num patamar moral mais elevado do que o resto da sociedade. As esquerdas, historicamente, julgam. E, inexoravelmente, condenam. É por isso que Bolsonaro não tem o menor pudor de ser grosseiro em público. Ao contrário: ele faz questão de gerar o escândalo moral, porque é isso que seu público espera.
Só que ele está exagerando. São tantas e tão frequentes as manifestações mal-educadas do presidente, que muitos bolsonaristas convictos já se perguntam: por que ele não fica calado? Por que não se limita “apenas” a governar o Brasil? Não seria melhor para ele e para sua gestão?
Talvez Bolsonaro acredite que não. Talvez ele até use essas polêmicas como manobra diversionista, a fim de encobrir questões que seriam difíceis de explicar. Não passaria, portanto, de uma estratégia. Mas há possibilidade de que nada disso seja de caso pensado. Pode ser que Bolsonaro não consiga ser diferente. Pode ser que ele seja realmente, assustadoramente, aquilo que parece ser.