Ao toque do clarim muitos veteranos, hoje em trajes civis, marejaram os olhos. Eram eles o alvo das homenagens do Exército, na manhã de quarta-feira (1), aos militares do Sul que, nos últimos 13 anos, garantiram o fim da guerra civil no Haiti. Uma cerimônia que tem razões de sobra. Os gaúchos foram maioria no comando da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) e também entre as tropas que impuseram a paz naquela ilha caribenha, devastada por conflitos no início dos anos 2000. A missão terminou em agosto e os militares estão convictos: eles ajudaram um pouquinho o Haiti. Mas aquele país mudou a concepção de vida deles. Voltaram com adestramento de guerra, propósitos de paz e uma visão de mundo menos egoísta, como eles mesmo salientam.
— Quando cheguei no Haiti é que percebi como os brasileiros reclamam de barriga cheia. Aquele pessoal tem pouca coisa e não fica triste. Aqui a gente tem muita coisa e reclama o tempo todo — define o soldado Vagner Camargo da Silva, do 18º Batalhão de Infantaria Motorizada (Sapucaia do Sul), que esteve entre 2015 e 2016 na Minustah. Mesmo criado na Lomba do Pinheiro, um bairro com muitos problemas, Silva se espantou com a precariedade que viu no Haiti.
Entre 2004 e 2017, 26 contingentes brasileiros se revezaram em território haitiano, combatendo gangues de sequestradores, retirando armas de rebeldes, distribuindo alimentos, asfaltando vias, erguendo pontes. Ao todo 37,5 mil militares do Brasil atuaram no Haiti. Desses, 10 mil eram de unidades do Rio Grande do Sul. Dos 13 generais que comandaram a missão, cinco são gaúchos.
Silva foi um dentre os mais de mil militares homenageados na parada organizada na sede do 3º Regimento de Cavalaria de Guarda (Regimento Osorio), em Porto Alegre, nesta quarta. Sem esconder o orgulho de ostentar a boina azul da Organização das Nações Unidas (ONU), eles desfilaram perante familiares e o Comandante Militar do Sul, general Edson Leal Pujol - ele próprio um veterano do Haiti, que comandou a Minustah em 2013. O comandante destacou esse como sendo um dos pontos altos da carreira de qualquer fardado e considera que, além de missão real em território de risco (algo raro para tropas do Brasil), os brasileiros conseguiram o mais difícil: pacificar a ilha caribenha.
É como se mergulhasse no Brasil de 100 anos atrás: ruas de chão batido, sem saneamento, falta de comida. Mas, apesar disso, o povo está sempre com um sorriso
Marciele Ribas
primeiro-tenente
O primeiro-tenente Fabiano Coradini Segatto esteve entre os primeiros militares a desembarcar no Haiti, em 2004. Ele integra desde 2002 o 19º Batalhão de Infantaria Motorizada (de São Leopoldo), a primeira tropa do Brasil na Minustah. Os soldados da ONU enfrentaram tiroteios desde os primeiros dias. Rebeldes políticos e gangues de criminosos disputavam controle de bairros como Bel Aire e Cité Soleil. Os brasileiros tiveram a árdua missão de pacificar essas regiões.
— Conseguimos. Quando retornei ao Haiti, em 2015, pude perceber a evolução. O comércio estava mais livre, havia mais pessoas nas ruas, quase nenhum tiroteio. Só a miséria continua, é permanente — descreve Segatto.
A pobreza também foi o que mais chocou a primeiro-tenente Marciele Ribas, nutricionista, natural de Cruz Alta. Do Exterior ela só conhecia o Uruguai. Então, entre 2015 e 2016, ela passou a percorrer vielas de Porto Príncipe, a capital haitiana. Fazia compras de víveres em mercados, organizava festas em creches de crianças haitianas, chegou a conviver com o povo local.
— A gente leva um susto. É como se mergulhasse no Brasil de 100 anos atrás: ruas de chão batido, sem saneamento, falta de comida. Mas, apesar disso, o povo está sempre com um sorriso — espanta-se Marciele.
O soldado Silva — aquele que criticou os brasileiros por reclamarem demais — sofreu ainda uma metamorfose emocional em terras haitianas, além do impacto causado pela miséria. É que o seu filho Gregory nasceu em Porto Alegre enquanto ele patrulhava as ruas de Porto Príncipe. O menino veio ao mundo um dia após o aniversário de Silva. Ele só foi conhecer o bebê três meses depois. Chegou de surpresa a Porto Alegre, numa folga.
— Fiquei mudo. Puro sentimento. Tu vê... é aí que a gente vê como é complicado atuar longe da família, longe de casa. Mas valeu muito a pena. Sou outro depois do Haiti — conclui.
Missão no Caribe
- A Minustah foi criada em fevereiro de 2004 pela Organização das Nações Unidas (ONU) para restabelecer a segurança e a normalidade institucional do Haiti, após sucessivos episódios de turbulência política e de violência.
- O Brasil comandou o componente militar da Minustah (de 2004 a 2017), que teve a participação de tropas de outros 15 países.
- No total, 37.500 militares das Forças Armadas brasileiras atuaram nessa Missão.
- Ao longo do período de atuação das Forças Armadas brasileiras, a população haitiana foi apoiada em duas catástrofes naturais que atingiram o país. No dia 12 de janeiro de 2010, um terremoto causou a morte de mais de 200 mil pessoas e, em 4 de outubro de 2016, o furacão Matthew causou inundações e deixou milhares de desabrigados.
- O Brasil teve 25 militares mortos no Haiti. Nenhum foi assassinado. 18 morreram num terremoto e os demais, em acidentes. Mas vários soldados foram feridos a tiros.