Volta e meia pego um volume do meu livro do Gibbon, dou uma folheada, leio um trecho e recoloco na caixa com um suspiro. Alimento aqui um projeto: quero ler os seis tomos dessa obra monumental, da primeira à última de suas 3 mil páginas, em coisa de semanas. Ainda não fiz isso porque estamos falando em um livro escrito em inglês do século 18, o que significa que teriam de ser semanas de ócio e concentração, do que não dispomos no momento.
O livro de Gibbon a que me refiro, óbvio, é um sobre o qual já escrevi e tornarei a escrever sempre e sempre, o clássico Declínio e Queda do Império Romano, um dos trabalhos fundadores da historiografia moderna. Você pode encontrar versões condensadas dessa obra em português, e não são traduções ruins. Faça isso.
Estou citando Gibbon por ter lembrado de um pedaço do seu livro em que ele escreveu o seguinte:
“Se fosse solicitado a definir o período da história do mundo em que a condição da raça humana foi mais feliz e próspera, sem hesitar mencionaria o tempo transcorrido entre a ascensão de Nerva (96 d.C.) e a morte de Aurélio (180 d.C.). Juntos, esses reinados são, possivelmente, o único período da História em que a felicidade de um grande povo foi o único objetivo do governo”.
É grave essa observação de Gibbon. Apenas os cinco primeiros imperadores da chamada “Dinastia Antonina” realizaram governos inteiramente dedicados ao povo, em milênios da história da humanidade.
Gibbon não viveu para ver os anos 1800. Quer dizer: há mais de dois séculos entre nós e ele. Será que nesse pedaço de tempo houve outros governos dos quais se pode dizer que trabalharam apenas pela felicidade do seu povo?
Talvez não. Talvez na época do Império Romano essa façanha fosse mais fácil de ser atingida, porque dependia, basicamente, da vontade de um único homem: o césar. O Senado romano, na prática, tornou-se figurativo após o primeiro imperador, Augusto. Assim, os cinco primeiros antoninos, os chamados “reis filósofos” puderam exercitar suas boas intenções sem ter quem os atrapalhasse.
O problema acontecia quando o rei não tinha boas intenções. O sucessor de Marco Aurélio, por exemplo, foi seu filho Cômodo, um maluco que achava ser a encarnação de Hércules e gostava de lutar na arena contra perplexos gladiadores, que, se vencessem, morriam e, se perdessem, morriam também. Foi esse Cômodo, violento, despótico e cruel quem começou o longo processo de declínio do Império Romano descrito com genialidade por Gibbon.
Já nós, homens do século 21, somos protegidos do despotismo pela democracia, que, afinal, é o “governo do povo”, o governo da maioria. Mas também ficamos expostos à mediocridade da maioria. Dificilmente experimentaremos o governo de um sábio, como Marco Aurélio, porque o povo escolhe seus representantes à sua imagem e semelhança.
Assim é no Executivo e muito mais no Legislativo. Olhe para o nosso Congresso: quando surge um projeto razoável, como o pacote anticrime de Moro, eles o mutilam e deformam, transformando-o em um Frankenstein que viverá para servi-los. É o que têm feito os nossos congressistas: assustados com a Lava-Jato, urdiram leis para protegê-los. Literalmente, legislaram em causa própria. Conseguiram. O Brasil, que havia avançado um passo no combate à corrupção, recuou dois. Nós, sem termos experimentado as delícias do apogeu de um império como o romano, já podemos começar a escrever a história de nosso declínio e queda.