Vi na TV uma cena que, para acreditar que aconteceu, só mesmo vendo. Deu-se no centro de Niterói, no Rio de Janeiro, às cinco e meia da manhã de sábado passado. As câmeras de segurança registraram tudo.
Um homem chamado Aderbal Ramos de Castro vinha caminhando pela calçada e uma moradora de rua atravessou a pista para lhe pedir esmola. Segundo testemunhas, Neia, esse o apelido da moradora de rua, queria um real. Ele, aparentemente, disse não, e ela ficou insistindo. Neia seguiu o homem por alguns metros, argumentando com alguma agressividade. Foram poucos passos, nem meia quadra de distância. Então, ele se irritou, levou a mão à cintura e sacou uma arma sob a camiseta. Sem hesitar, o homem atirou duas vezes no peito da mulher, que caiu no asfalto e morreu horas depois. Enquanto ela agonizava, ele se afastou a passo, guardando a arma novamente na cintura.
O que me espantou neste caso nem foi o assassinato em si – assassinatos são crimes comuns no Brasil. O que me espantou foi a naturalidade do ato. Esse homem, Aderbal, disparou contra a mulher como se estivesse chutando uma lata de lixo. E até suspeito que, se tivesse chutado uma lata de lixo, ele talvez demonstrasse mais apreensão.
Fiquei pensando: será que o assassino pertence a alguma milícia ou é integrante de uma facção criminosa? Porque, afinal, ele parecia muito acostumado com essa espécie de violência… Fui investigar. E descobri que Aderbal é dono de uma lanchonete e estava indo para lá, quando foi abordado pela moradora de rua. Segundo sua advogada, ele não tem ficha criminal e possuía porte de arma. Como havia sido assaltado em outras oportunidades, ficou com medo de Neia e decidiu atirar.
A polícia não comprou a versão de Aderbal. O delegado disse achar que não se tratava de legítima defesa. Revi o vídeo. Aderbal não dava a impressão de estar assustado, nem de se sentir ameaçado. Ele apenas se agastou com a insistência e reagiu puxando o revólver. Ou seja: tudo indica que foi mesmo aquilo que eu havia concluído anteriormente: ele matou porque, no Brasil, é fácil matar. No Brasil existe a impressão de que, seja lá o que se faça, “não vai dar nada”. É a sensação de impunidade que já abordei no começo da semana, sensação aumentada a cada dia por decisões do Congresso e do STF.
Mas, ao mesmo tempo, torna-se aparentemente contraditório dizer que o Brasil é o país da impunidade, quando há 800 mil pessoas presas.
Seria mesmo uma contradição?
Não.
Porque o Brasil pune errado. Na verdade, toda a estrutura é torta. Noventa por cento dos 57 mil homicídios anuais não vão sequer a julgamento. Nos que vão, a sentença é uma piada: o réu é condenado a 20 anos de reclusão e não cumpre um quarto disso. Nesse tempo, em vez de se regenerar, ele faz pós-graduação no crime, porque depende da proteção de uma facção para sobreviver dentro do presídio. Ao sair de lá, está pior do que entrou. Ele virou um criminoso profissional. Quer dizer: o Estado é desmoralizado ao não punir e ao punir.
Ninguém respeita o Estado brasileiro, porque ninguém respeita a injustiça. E, se não respeitar o Estado, o cidadão não vacila em fazer o que quiser. O empresário oferece propina, o político aceita. O caminhão bate, a população saqueia a carga. O comerciante maquia o preço da mercadoria, o industrial sonega o imposto. O mendigo pede esmola com agressividade, o dono da lanchonete se irrita, saca da arma e atira. Por que ele fez? Porque achou que podia fazer. Porque achou que “não vai dar nada”. Porque assim é o Brasil.