Ela bebia uísque. Poucas mulheres bebem uísque. Menos ainda, caubói. Você sabe como é uísque caubói: puro e sem gelo, como o coração do Pedro Ernesto Denardin.
No Brasil, as pessoas têm mania de profanar o uísque. Houve tempo em que o tomavam com guaraná. Aldir Blanc deu charme a essa fórmula extravagante com uma das mais belas músicas da MPB. É a singela recordação de um bolero nos braços da amada:
“Eu hoje me embriagando
De uísque com guaraná
Ouvi tua voz murmurando:
‘São dois pra lá, dois pra cá’”.
A moça a quem me referia não conspurcava o uísque com guaraná ou quaisquer outros aditivos. E ia jantar lá em casa num sábado à noite. Já havíamos saído antes, mas junto com outras pessoas. Numa dessas, por algum motivo, a conversa deslizou para o tema de comidas e bebidas fortes. Ela estava bebendo (adivinhe) uísque. Porém, com gelo. Mexeu as pedrinhas com a ponta do dedo, num gesto que considerei provocativo. Ergueu o pequeno nariz. E sentenciou:
– Adoro comidas e bebidas fortes. Bem fortes. Meu uísque, inclusive, prefiro sem gelo.
Achei tão bonito aquilo. Foi então que me exibi, jurando que era exímio cozinheiro de comidas fortes, bem fortes, arrematando com um tiro no escuro:
– Um dia faço um prato especial pra ti.
Ela, sorrindo de lado, miou:
– É só marcar.
Gol do Brasil.
Arrisquei:
– Próximo sábado?
– Feito.
A vida é boa!
Eu tinha uma responsabilidade, portanto. Não podia decepcionar.
No sábado pela manhã, corri ao súper. Decidi comprar três garrafas de uísque, inclusive uma de Jack Daniels, o que poderia ser uma temeridade, se estivéssemos lidando com uma purista.
Lembrei que, certa vez, estava na Escócia, em Edimburgo, e fui a uma fábrica de uísque. O guia mostrava como a bebida era preparada, todo o cuidado que tomavam e tudo mais. De repente, ele se virou para mim e perguntou:
– Tens uísque em casa?
E eu, ingênuo:
– Sim: Jack Daniels.
– Não! – ele gritou, me assustando. – Não! Jack Daniels é bourbon!
Perguntei a diferença e ele passou os 15 minutos seguintes me explicando. Foi uma aula interessante, mas não me pergunte o que é uísque e o que é bourbon, continuo não sabendo.
Em todo caso, gosto de Jack Daniels e a moça poderia gostar também. Então, deitei um no carrinho. Antes de sair do setor de bebidas, parei diante dos champanhes. Mulheres adoram champanhe. Peguei uma garrafa. Já ia para o caixa, já estava indo mesmo, quando vi algo que há anos não via: absinto. “A Fada Verde!”, murmurei para mim mesmo. “Por Baudelaire! Por Rimbaud! Levemos a Fada Verde para que ela nos encante!”
Levei.
Que comida poderia ser re-al-men-te forte? Fiz o que qualquer homem adulto e maduro faria: liguei para a mãe.
E a comida? Bem, eu havia prometido algo forte. Bem forte. Que comida poderia ser re-al-men-te forte? Fiz o que qualquer homem adulto e maduro faria: liguei para a mãe. Indaguei acerca de comidas fortes. O que ela me disse soou como o bimbalhar do sino pequenino de Belém.
– Ontem fiz um feijão muito bom e está sobrando um monte.
Meu problema estava resolvido. Era óbvio que o próprio Todo-Poderoso e Seu exército de anjos e arcanjos queriam que me desse bem naquele fim de semana.
Fui até a casa da mãe, peguei um grande pote de feijão e voltei contente para casa. Era uma trapaça, sei, mas um valor mais alto se alevantava, como diria Camões. Para atenuar o engodo, resolvi fazer eu mesmo o arroz, mais uma farofinha de ovo com linguiça frita, mais uma salada de tomates e cebola. Tudo forte. Bem forte.
Aliás, você sabe como tem de ser feita a cebola numa salada? Escalde-a com água fervente. Em seguida, retire a água quente e cubra-a de água gelada. Depois, fervente de novo. E gelada outra vez. Aquela acidez da cebola desaparece. Fica uma delícia.
Constate, por essa dica, como não fui uma fraude completa naquele fim de semana.
Quando a moça chegou, eu fazia exatamente isso: esquentava e esfriava a cebola, enquanto a panela de feijão tremelicava sobre o fogo.
– O feijão, eu preciso de pelo menos 24 horas para fazê-lo! – exclamei.
Ela:
– Oh!
Estava impressionada…
– Que uísque você quer, beibe? – perguntei, gentil, conduzindo-a pelo braço até o barzinho onde guardava as bebidas.
Foi nesse momento que tudo começou a desmoronar. Ela olhou para uma garrafa e apontou:
– O que é isso?
– Absinto.
– A Fada Verde… – ela suspirou.
Ela conhecia a história da Fada Verde – era mesmo uma mulher especial.
– Nunca bebi absinto – ela contou. – Posso?
– Claro!
Por Baudelaire! Por Rimbaud! Liberaríamos a Fada Verde!
Foi o fim das minhas aventuras com a moça que bebia uísque mas não podia beber absinto. Vida de solteiro pode ser frustrante.
Servi um cálice. Ela o tomou com aquela mãozinha e o engoliu rapidamente, fazendo mmm. Foi o primeiro de muitos. Quantos? Não sei. Só sei que ela nem sequer provou o meu feijão. Ou o feijão da mãe. Em coisa de, sei lá, 20 minutos, ela estava dançando e cantando em volta da mesinha da sala. Em 30, estava vomitando todo o meu apartamento. Em uma hora, estávamos os dois dentro de um táxi, em direção à casa dela, ela parecendo aquela jaqueta que tiraram da boca do cachorro, balbuciando que o mundo rodava, rodava mais que os casais.
Foi o fim das minhas aventuras com a moça que bebia uísque mas não podia beber absinto. Vida de solteiro pode ser frustrante.