Jantávamos em Cape Cod, no sábado à noite, em um pequeno restaurante que se equilibra sobre palafitas acima do mar. Cape Cod, como indica o nome, é um cabo que avança pelo Atlântico, no sul de Massachusetts. É um lugar bonito, cheio de prainhas e casas elegantes. O restaurante em que estávamos chama-se Water Street Kitchen, e é muito bom. Mas não vou descrever a comida que foi servida, e sim a música que tocava. Logo que entrei, identifiquei e sorri. Era Desafinado, na voz de João Gilberto. Espantado com a coincidência, chamei o gerente e perguntei se ele sabia que João Gilberto morrera naquele mesmo dia. Ele não sabia. Ficou consternado.
Foi uma coincidência, mas nem tão surpreendente quanto parece. João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius são useiros e vezeiros nos Estados Unidos. Os americanos amam a bossa nova. O mundo ama a bossa nova. Pena que a bossa nova seja irrepetível.
Tom e Vinicius já morreram e João Gilberto… Bem, João Gilberto não podia continuar vivo. O mundo em que ele viveu, e que o tornou possível, está extinto. Esse mundo, especificamente, era o Brasil. Mais especificamente ainda, o Rio de Janeiro. João Gilberto, embora tivesse nascido na Bahia e, como todo baiano, proclamasse com orgulho a sua baianidade, era produto de um Rio de Janeiro extinto.
Aquele Rio de Janeiro que se foi era a capital mundial da bola. Nele foi levantado o Maracanã, a catedral do futebol. Você dirá que o Maracanã ainda está de pé. Engano seu. O que há ali, atrás da estátua de Bellini, é uma arena igual a todas as outras que foram impostas pela FIFA, sem graça, anódina, desfigurada como aquelas tristes senhoras que apelam para a cirurgia plástica e o botox para vencer a idade invencível.
Naquele Rio de Janeiro, a vida era amena. Dois amigos de João sentavam-se todas as tardes em um boteco de Ipanema e viam uma loira dourada deslizar para fora do edifício em que morava e ondular em direção à praia. Uns assobiavam para ela, outros simulavam desmaios ante sua beleza. O momento, da passagem da loira, em seu doce balanço a caminho do mar, era um acontecimento. Tanto que os dois começaram a compor uma musiquinha: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça…" Essa musiquinha, quem diria, também foi tocada no restaurante de Cape Cod.
Naquele Rio, a inteligência era contagiosa e explosiva. Às vezes, de uma detonação saía "O Pasquim". Em outras, a Rede Globo. Ou, quem sabe, alguma frase imortal do Millôr.
Foi assim que se forjou João Gilberto. Ele morava no Leblon, perto do antigo restaurante Antiquarius, que, é óbvio, já fechou. João Gilberto adorava a comida do Antiquarius, mas nunca ia lá. Telefonava e pedia para um garçom, sempre o mesmo garçom, atendê-lo. O garçom pegava o telefone e já sabia o que ia acontecer: João pedia que ele lesse o cardápio. Ele lia. E João se decidia sempre pelo mesmo prato. Que era acondicionado numa "quentinha" especial para ele, e só para ele: o Antiquarius não entregava comida a domicílio para nenhum outro cliente. Então, um entregador, sempre o mesmo entregador, levava o jantar de João e o deixava na porta do apartamento. Quando João queria partilhar o jantar com um amigo, ele pedia dois pratos: um ia para o apartamento dele, outro para a casa do amigo. Aí ele ligava para o amigo e os dois ficavam conversando durante a refeição. Economizava em Uber.
Contam que, certa feita, João Gilberto ficou três meses encerrado em seu apartamento, a fim de criar músicas para um novo disco. Compunha no banheiro, onde a acústica era perfeita. Não saiu um único dia, apenas tocou e tocou e tocou. Quando, enfim, abriu as janelas, seu gato de estimação se atirou para a rua e para a morte libertadora. Mas isso deve ser uma piada, claro, o Rio daquela época era dado a piadas. Era um Rio bem-humorado, centro espiritual de um Brasil igualmente bem-humorado. Eles não existem mais. Tudo agora é mais grave e belicoso, tudo agora é mais perigoso. Um lugar desses não tem como gerar um João Gilberto. João Gilberto não tinha mais onde existir.