Assisti a Democracia em Vertigem, neste final de semana. Queria descobrir por que Caetano Veloso chorou ao ver o filme.
Descobri.
Se você quiser assistir também, vá prevenido: são duas horas entediantes. A narradora fala com uma voz desmilinguida, quase aos gemidos, suponho que de maneira intencional: ela está lamentando pela tal queda vertiginosa da democracia brasileira.
Essa, aliás, é a tese: o Brasil emergiu de uma ditadura graças à luta de heróis como Lula e os pais da narradora e, agora, com a queda de Lula e do PT, volta às trevas.
Lula, na verdade, é mais do que herói para o filme: é uma espécie de santo. Ele é bondoso, ele ama o pobre e pelo pobre é amado, mas, coitadinho, teve de se submeter aos malvados do sistema para poder fazer algo de positivo, quando ascendeu ao poder. O tempo inteiro o tom é de bajulação a Lula. Kim Jong-un, se vir isso, vai pedir para fazerem algo igual, lá na Coreia do Norte.
Nenhum erro dos governos petistas é levado a sério. Os Correios foram quase destruídos, a corrupção corroeu empresas poderosas, como a Eletrobras e a Petrobras, o BNDES fez empréstimos espúrios a empresários amigos do partido e a ditaduras de esquerda, bilhões de dólares foram gastos em estádios que se tornaram inúteis depois da Copa do Mundo, falhas no controle sanitário permitiram o retorno de epidemias, os gastos com a Olimpíada do Rio foram escandalosos, a segurança pública e a educação básica pioraram como nunca, a máquina pública foi inchada com a contratação de mais de 235 mil funcionários, houve irregularidades na concessão de lotes para a reforma agrária e nos incentivos a pescadores… ufa! É muita coisa. É preciso tempo e dedicação para fazer tanto assim. Mas, no filme, a decadência do país é atribuída, incrivelmente, às boas intenções do partido: tudo aconteceu, segundo a narradora, depois que a brava Dilma Rousseff decidiu enfrentar os banqueiros. Sério!
Confrontada com a Lava-Jato, a corrupção revelada, políticos de todos os partidos e grandes empresários presos, bilhões devolvidos ao erário, confrontada com essa realidade incontornável, o que a narradora faz? Ela a contorna. Explica que, para tirar os beatos do PT do poder, a elite branca sacrificou partes da própria elite branca. SÉRIO!!!
Democracia em Vertigem se apresenta como um documentário, mas é uma peça de propaganda.
Democracia em Vertigem se apresenta como um documentário, mas é uma peça de propaganda. Tudo bem, faz-se isso desde os anos 30, com O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Não é incomum. Incomum é Caetano Veloso chorar, depois de ver o filme. A reação de Caetano, e de outras pessoas mais ou menos importantes da elite cultural e da esquerda brasileira, é a demonstração de algo terrível: é a prova de que eles não aprenderam nada com o que aconteceu nos últimos anos. Nada! Eles acreditam mesmo nessa narrativa, a ponto de se emocionarem com ela. Eles não compreenderam que foi essa atitude, EXATAMENTE ESSA, que empurrou um tipo como Jair Bolsonaro para a presidência da República.
É horrível saber disso, porque o Brasil precisa da atuação sensata das esquerdas e dessa elite cultural. São as esquerdas, com seu pensamento generoso, com a ideia de que os mais fracos têm de ser protegidos, com a consciência de que o Estado tem de servir também para corrigir injustiças, são as esquerdas as maiores incentivadoras das políticas de bem-estar social no mundo todo. Mas não esquerdas populistas, atrasadas e mistificadoras, como essas para as quais Democracia em Vertigem foi feito. Essas, elitistas e arrogantes, apenas dividem a sociedade e atiram a maioria da população para o outro lado, e elegem Bolsonaros e Trumps.
Caetano derramou lágrimas pela democracia brasileira. Seria até bonito isso, seria até bom. Se as lágrimas fossem derramadas pelos motivos certos.