A Kelly Matos ganhou uma musse outro dia. Ela estava na Fenadoce, em Pelotas, e eles deram aquela musse para ela. A Kelly Matos adora musse. O meu amigo Carlão Fleck diz que mulher gosta de três coisas mais do que de todas as outras: doce, dinheiro e filho. Filho a Kelly ainda não tem. Dinheiro, um pouco. Doce, ela se esbalda, ela se refocila, ela se repoltreia, ela se repimpa com doce.
Então, a Kelly pegou aquela musse e pensou: “Levá-la-ei para Porto Alegre, a fim de comê-la com alguma solenidade” (a Kelly usa mesóclise, quando pensa). A musse, portanto, foi acondicionada em uma caixa apropriada e rumou com Kelly para o quarto do hotel em que ela estava hospedada.
E é assim que a nossa história de fato começa, com a Kelly no quarto do hotel, em uma noite pelotense. Sei bem como são esses momentos, já fiz muitas viagens a trabalho. Um quarto de hotel pode ser um lugar solitário. Você já cumpriu as tarefas do dia, já falou com quem tinha de falar – com seus chefes, com seus afetos, com o gerente do banco. Agora, é só você consigo mesmo.
Esse encontro é decisivo. Porque nós precisamos gostar da nossa companhia. Na verdade, trata-se da única maneira de viver bem. Se você consegue sentir o prazer de estar vivo, mesmo quando não há outro ser humano por perto; se você sabe que, às vezes, a solidão é uma bênção; se você é assim, você está perto de ser uma pessoa inteira.
A Kelly é. A Kelly de forma alguma se sentiu aflita por estar sozinha no quarto de hotel. A Kelly sentiu-se aflita porque bem ali na frente dela estava aquela musse.
Era uma musse de chocolate, e era cremosa. Parecia ter a consistência perfeita, que um chef francês aprovaria. Musse, você sabe, é um aportuguesamento de “mousse”, que, em francês, significa “espuma”. Quem inventou essa iguaria foi ninguém menos do que o pintor .
A história de Toulouse-Lautrec é maravilhosa, um dia ainda conto aqui. Ele sofria de uma doença genética, porque era descendente de nobres que, por gerações, casavam-se entre si, hábito comum na elite da velha Europa. As pernas de Toulouse-Lautrec eram curtinhas, desproporcionais ao tamanho do corpo. Ele tinha pouco mais de metro e meio de altura. Mas era um grande artista e um grande boêmio. Com suas gravuras, consagrou o Moulin Rouge e as dançarinas de cancan. Estava sempre na noite, o Malenotti diria que era o rei da chalaça. Numa dessas, inventou um drinque que misturava conhaque e absinto, poção tão forte, que batizou de Terremoto. E, para “rebater” (se você não sabe o que é, pergunte ao Malenotti), criou a musse, que, originalmente, chamava de “maionese de chocolate”.
Diante de toda essa história, punha-se Kelly Matos, naquela noite do sul do Rio Grande do Sul. Parada no meio do quarto, ela olhava para o pote já aberto. Da musse desprendia-se um odor obviamente doce, mas nunca enjoativo. Não. Era uma doçura suave, inebriante, que excitou as glândulas salivares de Kelly e, da garganta, extraiu-lhe um oh:
– Oh…
Foi aí que Kelly resolveu: não esperaria mais. Comeria a musse! Tomada a decisão, uma premência pulsante tomou conta do peito de Kelly e ela saiu a vasculhar o quarto em busca de uma colherinha. Uma colherinha, ela precisava de uma colherinha! Pelo amor de Deus, uma colherinha! Abriu gavetas e armários, tateou sobre a mesa de cabeceira, olhou até embaixo da cama, e nada de colherinha. Se ligasse para a portaria e pedisse uma, eles decerto demorariam 10 ou 15 minutos para atendê-la e ela não podia esperar. Ela tinha de comer aquela musse! Ela tinha de satisfazer seu desejo imediatamente! Era algo maior e mais forte do que ela. Por todos os pândegos do Montmartre, Kelly necessitava da inspiração dos pintores imortais! E a inspiração lhe veio. Resoluta, marchou para o banheiro e, de dentro de um copo de vidro vulgar, colheu o único objeto que poderia salvá-la daquele embaraço: a escova de dentes.
E Kelly empunhou a escova pelo lado das cerdas e, com denodo e desassombro, mergulhou-a no coração da musse, e de lá veio o creme e ela o levou à boca arfante e, oh… OH…, foi bom. Abençoado seja o gênio de Toulouse-Lautrec: foi bom.