Li o Mein Kampf, ou Minha Luta, livro que Hitler escreveu enquanto estava preso por ter tentado dar um golpe de Estado, o chamado “Putsch da Cervejaria”. Na verdade, não foi ele quem escreveu. Hitler ditou o texto a colaboradores que o visitavam na cadeia, e esses se esforçaram para organizar as ideias. Não tiveram muito êxito. O livro é mal-escrito, confuso e enfadonho. Você avança os parágrafos como se fossem os últimos quilômetros de uma maratona – cada um é uma dor.
As esquerdas cometeram os seus pecados, e foram muitos. Entre eles, não está o nazismo.
Hitler não faz ali uma biografia. É apenas um amontoado de conceitos meio atrapalhados. Mas essa inconsistência e essa falta de método é que fazem do nazismo uma fonte abundante de argumentos contra ou a favor seja lá do que for. Em primeiro lugar, porque a algaravia imprecisa de Hitler, por ser imprecisa, pode se aplicar a qualquer opinião. Em segundo, porque o nazismo é a expressão do Mal. Quer dizer: todas as pessoas concordam que o nazismo é monstruoso. Logo, quando você diz que “os nazistas faziam isso”, todos sabem que “isso” é errado. E, se você diz que “os nazistas eram contra aquilo”, todos concluem que “aquilo” é certo.
O nazismo e o Mein Kampf são espécies de nêmesis da Bíblia. Mas, atenção!, estou fazendo uma comparação apenas da maneira como você pode empregá-los na argumentação, não no conteúdo. Nem mesmo na forma pode-se fazer essa comparação: a Bíblia tem um texto vigoroso, às vezes poético, cheio de força e significado. O Mein Kampf tem um texto entre o raso e o pretensioso.
Só há três temas abordados com clareza no livro de Hitler: o germanismo, o antissemitismo e o anticomunismo. É aí que você chega ao centro do nazismo. Na política e na economia, o nazismo é vago. A lógica do pensamento nazista está incrustada na hierarquia racial. Existiria uma raça superior, a germânica, chamada por Hitler (equivocadamente) de ariana. Era essa raça que deveria exercer o poder.
O nacionalismo de Hitler não era geográfico, era sanguíneo. Quando ele gritava “Deutschland über alles”, não era precisamente a Alemanha que devia estar acima de tudo, mas a raça germânica. Tanto que ele nem era alemão, era austríaco.
O marxismo é quase o oposto disso. O centro do marxismo é o conceito de luta de classes. Não existe marxismo sem a ideia de luta de classes, assim como não existe nazismo sem a ideia de superioridade racial. Não por acaso, na lápide do túmulo de Marx, no cemitério de Highgate, em Londres, está inscrita a ordem: “Workers of all lands, unite”. Isto é: os proletários “de todas as terras” devem se unir, pouco importando se eles são alemães, judeus, brasileiros ou russos.
Esse conceito, um pouco mais suavizado, é o que sustenta também o socialismo, que tenta tornar a sociedade mais igualitária, fazendo com que o Estado preste atendimento diferenciado às classes menos favorecidas. Não há, nas filosofias de esquerda, sejam elas quais forem, qualquer referência ao darwinismo racial do nazismo.
As esquerdas cometeram os seus pecados, e foram muitos. Entre eles, não está o nazismo.
A nova direita brasileira, e só ela no mundo inteiro, só ela em qualquer lugar e em qualquer tempo, só a nossa flamante direita tupiniquim alega que o nazismo era de esquerda, numa tentativa óbvia de diminuir as esquerdas. Natural: o nazismo pode ser usado como argumento para diminuir qualquer coisa. O problema é que, às vezes, o argumento é tão forçado, que se volta contra o argumentador. O fato de o nazismo não ser de esquerda não torna a esquerda melhor. Mas, quando a direita repete essa falácia, ela, direita, é que piora.