O mundo mudou para melhor devido à Segunda Guerra Mundial. Depois da maior dor do mundo, os homens se conscientizaram de que alguns valores são bens em si mesmos. Dois em especial: os direitos humanos e a democracia. As nações do planeta, sobretudo as do Ocidente, passaram a se guiar por essa espécie de consenso filosófico. E, em muitos casos, deu certo. Os Estados Unidos, a Europa Ocidental, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia e Israel são lugares em que as pessoas experimentam níveis de bem-estar e de respeito às diferenças inéditos na História da Humanidade.
A América do Sul também deveria (e queria) seguir esse caminho. Mas algo saiu errado: nos perdemos por causa da nossa boa sorte. Felizmente, pouco ou nada sofremos com a Segunda Guerra. Infelizmente, pouco ou nada aprendemos com o sofrimento causado pela Segunda Guerra. Resultado: o totalitarismo foi derrotado; o populismo, não.
Isso porque nossos ditadores não foram pendurados pelos pés em postos de gasolina como Mussolini nem se transformaram na imagem do mal como Hitler. Ao contrário: ainda que afastados temporariamente do poder, nossos ditadores mantiveram a popularidade. No Brasil, Getúlio Vargas voltou "nos braços do povo", como ele próprio definiu. Na Argentina, Perón voltou até na forma de suas mulheres, Evita e Isabelita. O getulismo e o peronismo continuaram vivos, seus herdeiros continuaram ativos.
Há exatos 55 anos, os militares deram o golpe de Estado para impedir que um herdeiro de Getúlio, Leonel Brizola, se elegesse presidente da República. Se não houvesse o golpe de 1º de abril, as eleições seriam disputadas meses depois por, provavelmente, Brizola, Juscelino e Lacerda. Quem venceria? Impossível responder, mas é certo que, se a democracia tivesse seguido o seu caminho tortuoso, o Brasil, mais cedo ou mais tarde, teria alcançado a estabilidade das grandes nações do Ocidente.
Isso não é especulação. É fato. A História recente prova que, quando houve normalidade democrática, como nos governos Juscelino, Lula e Fernando Henrique, o Brasil avançou.
Os militares, ao protagonizarem o golpe, deram sobrevida ao populismo. Médici, Collor, Lula e, agora, Bolsonaro são populistas. Collor e Lula foram criação da ditadura, assim como Bolsonaro foi criação do PT. Desgraçadamente, miseravelmente, a população brasileira ainda acredita que algum líder iluminado virá em sua salvação. Os brasileiros não compreendem que a salvação é justamente o oposto disso – é o funcionamento impessoal do sistema, no qual atua o próprio cidadão, independentemente de quem seja o líder.
Festejar o golpe é um erro grosseiro não apenas porque o regime militar foi cruel e incompetente; não apenas porque no regime militar se acentuaram a violência urbana, a inflação galopante, a dívida externa e a desigualdade social; não apenas porque o regime militar censurou, cassou, matou e torturou. Festejar o golpe é um erro grosseiro porque, ao sabotar a democracia, o golpe tirou o Brasil do caminho certo. Estamos atrasados por causa do golpe de 1° de abril de 1964.
Mas, por ironia, o maior erro de Bolsonaro, ao comemorar o golpe, é que ele, assim, se manifesta contra si mesmo. Porque Bolsonaro não é um produto do regime militar; Bolsonaro é um produto da democracia.
Se ainda vivêssemos sob a ditadura, Bolsonaro, que era um obscuro capitão ao se retirar do Exército, nunca chegaria a presidente. Nunca. Porque, na ditadura, para ser presidente era preciso ser general, e para ser general é preciso grande conhecimento, grande capacidade e grande esforço. Bolsonaro seria um estafeta dos generais.
Ele só chegou a presidente porque a democracia, por seus descaminhos, assim o permite. Na democracia, não é necessário ter mérito, é necessário ter voto. Mas Bolsonaro, por todas as suas limitações, é claro que não compreende essa piada amarga do destino. Nenhum dos atuais amantes da ditadura compreende. Um general de boa formação e boa cultura, um Golbery, por exemplo, compreenderia. E, é óbvio, se divertiria muito com isso.