Se o presidente Jair Bolsonaro não tivesse determinado a comemoração nos quarteis, os 55 anos do golpe de 64 teriam passado em branco. A imprensa já não se ocupa de efemérides e, provavelmente, teria ignorado o aniversário, por não ser uma data redonda, e só voltaria a falar do que significaram os 21 anos de ditadura em 2024, quando o golpe virar sessentão. Nas escolas, ninguém falaria daquele nem tão distante 31 de março, porque a História do Brasil é contada com a profundidade de um pires.
Bolsonaro conseguiu uma façanha com sua paixão pela ditadura: recolocou na ordem do dia da sociedade temas que anistia "ampla, geral e irrestrita" limitara à discussão em grupos restritos. Com exceção da série Os Dias Eram Assim, exibida em 2017, nem a ficção vinha se ocupando de tortura, desaparecimentos, mortes, censura e tudo o que marcou os anos de chumbo. Os próprios militares, que protestaram contra a criação da Comissão da Verdade, no governo do PT, invocavam a anistia para não reabrir as feridas.
Preocupado em agradar ao público que enxerga um comunista em cada ser que ouse questionar suas verdades, Bolsonaro despertou a indignação de integrantes do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo e ressuscitou as passeatas. Quem imaginaria uma passeata contra a ditadura, 34 anos depois do seu fim? Teve várias neste fim de semana e até aviãozinho carregando cartaz com a frase "Ditadura nunca mais", sobrevoando a Zona Sul do Rio.
De 1985 para cá, 0 31 de março continuou a ser lembrado dos quarteis, sem estardalhaço. No início, a "ordem do dia" ainda era notícia. Depois, caiu no esquecimento. A visibilidade que Bolsonaro deu ao assunto permitiu que jovens desinformados sobre o que se passou no Brasil nas décadas de 1960 e 1970 tomassem contato com histórias condenadas ao esquecimento.
Como na maioria dos desastres, o golpe de 64 não teve uma causa só. Havia o fator externo _ a guerra fria que opunha Estados Unidos e Rússia e que se materializava no continente americano com a adesão de Cuba ao comunismo _ e uma série de questões internas, a começar pela eleição do lunático Jânio Quadros, com um vice da chapa opositora, o trabalhista João Goulart (PTB). Transpondo-se para os dias atuais o sistema de eleição distinta para presidente e vice, seria o equivalente a Bolsonaro se eleger presidente com Manuela D'Ávila de vice. Chance zero de dar certo.
Quando Jânio renunciou, os militares tentaram impedir a posse do vice, mas Leonel Brizola, instalado no Palácio Piratini, comandou a resistência batizada de Legalidade. Jango assumiu, mas não conseguiu convencer os adversários de que ele, um próspero fazendeiro, não estava a serviço do comunismo internacional.
Sim, é verdade que uma parcela significativa da população apelou aos militares para que tomassem o poder. Também é verdade que a maioria dos donos de veículos de comunicação da época apoiou o golpe, para se arrepender mais tarde, quando começaram os abusos, com a prisão de opositores, a censura à imprensa, a tortura e a morte de presos políticos. Houve perdas dos dois lados, mas a contabilidade oficial mostra que foram maiores do lado de quem resistiu.