A cúpula das Forças Armadas sempre marcou de forma solene a derrubada do governo João Goulart (Jango) em 1964. E não será diferente neste 31 de março, quando transcorrem 55 anos do golpe que levou os militares ao poder por 21 anos. A diferença está em que, pela primeira vez desde o fim do regime militar, a homenagem é estimulada pelo presidente da República. Mais do que isso. Não só Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, vê razões para comemorar, como também vários civis que o elegeram, algo raro anos atrás.
A líder do governo na Câmara dos Deputados, a jornalista Joice Hasselmann (PSL-SP), saudou nos últimos dias o 31 de março como “a retomada de uma narrativa verdadeira de nossa história”. É uma mudança de discurso, já que anos atrás ela criticava as mortes ocorridas durante a ditadura militar.
Ativistas de direita decidiram usar o dia para fazer propaganda. Neste domingo (31), deve ser lançado pela produtora Brasil Paralelo o documentário 1964 – O Brasil Entre Armas e Livros. Sob o tema Ditadura, Regime Militar ou Revolução?, que prega que ocorreu uma contrarrevolução. A produtora apresenta depoimentos de quem pretende acabar com o que chama de “visão deturpada” sobre o regime militar, como o do escritor Olavo de Carvalho e o do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-RJ), descendente da família imperial.
Contrarrevolução é o mesmo termo usado pela cúpula das Forças Armadas para definir o que ocorreu em 1964, com a diferença de que os militares preferem agir com discrição e pouca celebração. O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, determinou uma ordem do dia (texto para celebração) para explicar por que os militares derrubaram o governo. Foi, segundo o documento, um ato para por fim ao caos e evitar uma guerra civil.
É a mesma opinião de Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, mas o general não vê necessidade de revisão histórica:
— Temos de mostrar a verdade para a sociedade, mas é passado. Faz parte do contexto daquela época, não da atual.
Santos Cruz, Azevedo e outros militares do governo não negam que houve centenas de mortos e desaparecidos na disputa deflagrada pelas Forças Armadas para reprimir as guerrilhas de esquerda. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o período deixou 434 mortes e mais de 200 desaparecidos. O que a cúpula das Forças Armadas pretende é lembrar que integrantes da esquerda armada também foram responsáveis por sangue derramado. Na conta dos militares, 117 pessoas (a maioria servidores da Segurança Pública) foram mortas.
O vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, pregou conciliação ao admitir que “houve vítimas de ambos os lados” durante o regime militar. A incógnita é se Bolsonaro terá o mesmo discurso apaziguador. É entusiasta da ideia de que não houve ditadura e sim uma guerra, vencida pelos militares. A cada 31 de março, promove homenagem à derrubada de Jango.
Mourão deixou o Comando Militar do Sul em 2016 e, na despedida, lembrou que saía do cargo num dia 31 de março. “Grande data!”, celebrou o general, para desagrado da então presidente Dilma Rousseff. Soou como provocação a Dilma, ex-militante de esquerda presa pelo regime militar. Em 2011, quando presidente, ela determinara que fossem proibidas nos quartéis as homenagens ao golpe de 1964. O estopim para a determinação foi o anúncio de que o general mais prestigiado no seu governo, Augusto Heleno, tinha preparado uma palestra intitulada A Contrarrevolução que Salvou o Brasil para ser lida em um evento na data. A fala foi vetada pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim. Hoje, Augusto Heleno é braço direito do presidente Bolsonaro e ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
A ordem de Bolsonaro ganhou repercussão internacional. Na sexta-feira, o Instituto Vladimir Herzog e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) enviaram à Organização das Nações Unidas (ONU) denúncia contra o presidente por tentar “modificar a narrativa histórica do golpe que instaurou uma ditadura militar”. Além disso, um grupo de mais de cem intelectuais mundiais assinou carta pública de repúdio à determinação. O manifesto foi incluído no mandado de segurança que está sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, no Supremo Tribunal Federal (STF), e pede a suspensão das comemorações — o ministro negou o pedido por entender não ser o foro competente.
Biblioteca e calendário ressaltam 1964
Os militares nunca seguiram a determinação de Dilma Rousseff proibindo celebrações em 31 de março. Fizeram cerimônias discretas, nos quartéis, para saudar o regime militar. Aqui e ali sempre ocorreram homenagens a 1964. Alguns exemplos: o nome da biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), que forma os oficiais generais, é Biblioteca 31 de Março. As datas festivas dos calendários militares sempre incluem o dia da derrubada do governo João Goulart.
É o caso da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, de Campinas (SP), onde estudaram Jair Bolsonaro e o atual comandante do Exército, general Edson Leal Pujol. Lá o 31 de março está marcado, no calendário oficial, como “Revolução Democrática de 1964”. Se nos governos petistas essa nominação era vista como provocação, agora tem apoio oficial. Outra mudança: a Empresa Brasileira de Comunicações (EBC), na época de Dilma, publicou em 2011, que “o golpe militar no dia 31 de março de 1964 fez o Brasil mergulhar em 21 anos de ditadura”.
A mesma EBC publicou agora um texto bem mais ameno: “o presidente Jair Bolsonaro aprovou a mensagem que será lida em quartéis e guarnições militares no próximo dia 31 de março, em alusão à mesma data no ano de 1964, dia da tomada de poder pelos militares, com a derrubada do então presidente João Goulart e a instalação de um regime controlado pelas Forças Armadas. A celebração da instituição do regime militar instalado em 1964 é classificada pelos militares como Revolução de 1964. O porta-voz diz que o presidente da República refuta o termo ‘golpe’ para classificar a mudança de regime”.
Os seguidores de Bolsonaro estourarão fogos de artifício ou semearão cruzes pelos jardins para marcar os “mortos pelo comunismo” e a vitória militar? Se depender do ânimo nos quartéis, não. Os militares estão satisfeitos em espalhar sua versão dos fatos. A palavra de ordem é cautela.
As homenagens ao golpe geraram reações. O advogado Carlos Alexandre Klomfahs e a Defensoria Pública da União requereram, na 6ª Vara Cível de Brasília, que a Presidência da República se abstivesse de comemorar o 31 de março. No final da tarde de sexta-feira (29), a juíza Ivani Silva da Luz proibiu o governo de promover comemorações – mas os eventos já haviam sido realizados em muitos locais.
O procurador da República Enrico de Freitas, dos Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul, considera que Bolsonaro e os militares que celebrarem a derrubada do governo João Goulart podem cometer improbidade administrativa por “usarem estrutura pública para comemorar crimes constitucionais”. Ele recomendou aos comandantes militares do Estado que não fizessem cerimônias alusivas à data.
Apesar disso, as solenidades foram mantidas, informa o Exército – Pujol participou de uma delas, em Brasília, na sexta-feira. Os militares querem reescrever a história do Brasil?
Se querem, nunca tiveram oportunidade igual em época democrática. Mais de cem oficiais de alto escalão estão em postos-chave do governo. De forma discreta, os generais não falam em reescrever e sim em “revisar conceitos”. Gostariam de deixar para trás o papel de vilões históricos e convencer a população de que foram chamados a intervir em meio a um cenário de radicalização política.
A disposição para mudar livros didáticos e premiar escolas que endossem esse viés salvacionista do papel dos militares parece ser maior entre os civis que apoiam Bolsonaro. Poucos, mesmo no governo, acreditam ser possível revisar os livros de história. Isso levaria anos e diversas gestões.
Golpe ou contragolpe
Para parcela da sociedade, 1964 foi o ano do golpe militar que interrompeu o governo legitimamente eleito de João Goulart (PTB). Para outro grupo, foi quando as Forças Armadas impediram que um governo minado por greves, insubordinação nos quartéis, invasões de terras e retórica incendiária colocasse o Brasil no rumo de uma revolução comunista. Ou seja, contragolpe, como definiu o historiador Hélio Silva. Confira opiniões sobre o assunto:
Mônica Leal (PP), presidente da Câmara de Vereadores
"Vejo o 31 de março de 1964 como uma contrarrevolução. Estava em andamento um processo gradual de implantação do comunismo. Sou filha orgulhosa de um coronel do Exército, Pedro Américo Leal, que foi chefe de Polícia do Rio Grande do Sul de 1966 a 1971, além de deputado estadual e vereador. Por tudo isso, gostaria muito que o MEC adotasse as disciplinas de Moral e Cívica e OSPB (Organização Social e Política do Brasil)."
Marco Antônio Villa, doutor em História Social, autor do livro Ditadura à brasileira: 1964 a 1985
"A República foi instaurada no Brasil mediante um golpe militar. Houve tentativas de rebeliões e golpes em 1922, 1924, 1932, 1935, 1937, 1945, 1954. Em 1930 até pode ter ocorrido revolução. O que havia em 1964 eram várias possibilidades de golpe, pela esquerda e pela direita. Já a ditadura do regime militar é inegável, mas o período é um pouco mais restrito."
General Edson Pujol, comandante do Exército
"O 31 de março representa um fato dentro de um contexto mundial de Guerra Fria, quando dois blocos antagônicos se enfrentaram, e que envolveu toda a nação brasileira, com a ativa participação das Forças Armadas. Deve ser compreendido no contexto histórico em que está inserido, sem renovar polêmicas."
Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do RS
"A ruptura constitucional que resultou no fim do governo começou com uma mentira. Nem sequer foi em 31 de março que os militares avançaram, mas nos dias seguintes. Outra mentira é que Jango abandonou o cargo. Que movimento democrático foi esse que resultou em prisões, torturas e mortes?"