Dias atrás, parei diante da Bíblia de Gutenberg, exposta na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Fiquei a parcos centímetros dela, mas não pude tocá-la. Ninguém pode. A Bíblia de Gutenberg, o primeiro livro impresso do mundo, está guardada em uma caixa de vidro à prova de balas. Pudera: cada um dos 48 exemplares que ainda existem vale US$ 300 milhões. Já pensou você ter em casa um livro que custa mais de R$ 1 bilhão?
Tudo, naquela Biblioteca do Congresso, é extremamente valioso. Ou quase tudo, porque descobri que eles têm até livros meus. Gostaria de me exibir mais por isso, mas seria desmascarado quando você fizesse uma pesquisa e descobrisse que a biblioteca contém inacreditáveis 155 milhões de itens, dos quais 40 milhões são livros. É a maior biblioteca do mundo. Você sabe o que Castro Alves faria se entrasse naquele palácio? Gritaria:
Uma nação que pretenda valorizar minimamente sua cultura não pode prescindir de instrumentos como a Lei Rouanet.
– Livros! Livros a mancheias!
O governo americano gasta mais de US$ 600 milhões por ano com a Biblioteca do Congresso, e é um dinheiro bem gasto, porque se trata de um patrimônio da humanidade. Naquela região de Washington, aliás, há vários patrimônios da humanidade, entre eles uma coleção de museus que você levaria um mês para percorrer inteira. Detalhe: em todos, a entrada é gratuita.
Essas relíquias são mantidas de duas formas: com recursos do Estado ou com doações. Nos Estados Unidos, há uma forte cultura de doações e de trabalho comunitário. Um dos critérios de ingresso nas universidades americanas é, exatamente, o tempo que o aluno dedicou a trabalhos comunitários durante o período em que estava na escola.
Harvard é a universidade mais rica do mundo, com orçamento de US$ 30 bilhões por ano. Deste total, 55% são doações, em geral de ex-alunos que se tornaram nababos e querem retribuir de alguma maneira o conhecimento adquirido na academia.
A Biblioteca de Harvard também é um expoente da cultura: é a maior biblioteca privada do mundo e a primeira da América. Tem 18 milhões de itens. Há, naquelas estantes vetustas, até livros encapados com pele humana. Se você for aluno de Harvard e pedir um livro, qualquer livro, eles provavelmente terão. Se não tiverem, compram. Se não houver no mercado, pedem emprestado a outra biblioteca.
Na verdade, essa biblioteca é um conjunto de bibliotecas, mais de 70. Uma das mais importantes foi doada por uma ricaça que, em 1912, viajava no Titanic. Quando o navio naufragou, o marido e o filho dela morreram, mas ela se salvou. Como o filho havia estudado em Harvard, a magnata deu a biblioteca de presente à universidade, com algumas condições: a arquitetura do prédio jamais poderia ser modificada e um dos salões deveria ser dedicado ao filho dela, lugar em que haveria flores trocadas todos os dias. Harvard cumpre as exigências desde 1915: as flores são trocadas diariamente e, para aumentar o prédio, ele cresce para baixo: são construídas salas subterrâneas.
Essas doações tão pródigas, feitas nos Estados Unidos, acontecem por formação cultural e desprendimento, sim, mas também porque, com isso, os doadores obtêm descontos ao pagar o imposto de renda. É algo normal e saudável. Porque a arte, historicamente, precisa de patrocínio. Precisa do mecenato. Mecenas, o homem que deu origem ao termo, era amigo e colaborador do imperador Augusto, vivia em luxo sibarita e, como compensação, patrocinava artistas, especialmente poetas. Virgílio, Horácio e Propércio eram sustentados por Mecenas, dele ganharam villas, a mando dele escreveram suas obras.
Pode-se dizer que praticamente toda a grande arte foi produzida sob essa lógica. Michelangelo pintou o teto da Capela Sistina por encomenda do papa Júlio II. Esse mesmo papa, chamado de Terrível, comprou obras de Rafael e Bramante. Leonardo passou a vida mudando de cidade para cidade na Itália e na França – ia aonde houvesse um governante disposto a pagar por seu trabalho. Machiavel escreveu O Príncipe para César Borgia, filho do devasso papa Alexandre VI e irmão da famosíssima, lindíssima e perigosíssima Lucrécia Borgia, com quem ele mantinha relações incestuosas.
São raros os exemplos de arte autossustentável na história do mundo. Só nos tempos atuais é que as indústrias da música e do cinema alcançaram algumas façanhas. Por isso, uma nação que pretenda valorizar minimamente sua cultura não pode prescindir de instrumentos como a Lei Rouanet. Há críticas procedentes à lei, mas ela tem de ser aprimorada, não extinta. A Lei Rouanet não serve apenas para financiar “artistas ricos de esquerda”, como tem sido pejorativamente dito e repetido no debate político do Brasil. A Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro, por exemplo, só sobrevive graças à Lei Rouanet. O novo governo precisa ter cuidado, a sociedade precisa ter cuidado. Porque a pobreza de espírito, às vezes,
é bem pior do que a pobreza material.