Eu não era nascido em 1936. Meus pais também não. Em 1936, o mundo era tão diferente, tudo era tão distante de nós, do século 21, que parecia outro planeta. Talvez só as pessoas fossem iguais, porque as pessoas não mudam. Hábitos mudam, culturas mudam, mas as pessoas, na essência, continuam sentindo as mesmas angústias e as mesmas vontades. Os séculos passam, as civilizações se extinguem, a própria Terra envelhece, e a alma humana continua exatamente igual ao que sempre foi.
Essa é a Grande Arte: é a que derrota o tempo. É a que mostra que os seres humanos são iguais: vivem pela necessidade de ter o que amar. E pela ânsia de serem amados.
A prova disso é que Erico Verissimo já era nascido em 1936, e já escrevia livros. Um deles, lançado naquele ano, encantou o meu filho agora, em 2018. Veja você: meu filho tem 10 anos de idade e brinca com coisas que nem a imaginação fértil de Erico seria capaz de conceber. Ele tem, por exemplo, um Xbox, com o qual joga uma centena de jogos e explora o mundo virtual da internet, além de conversar com amigos espalhados por todas as partes do planeta. Já vi meu filho sozinho no quarto dele, em Boston, jogando com um americano e um brasileiro. O americano a oito quadras de distância, o brasileiro a 8 mil quilômetros. Ele fazia a tradução das conversas e todos se divertiam muito, como se estivessem sentados ao redor de uma mesa.
Quando Erico escreveu As Aventuras do Aviãozinho Vermelho, nem televisão havia, Porto Alegre tinha pouco mais de 200 mil habitantes e as pessoas ainda tomavam café da tarde. Mesmo assim, Erico conseguiu se conectar ao espírito do meu filho, que correu ao Google para pesquisar quem havia sido aquele escritor de quem ele gostara tanto.
Enquanto meu filho ia fazendo descobertas ("Ele também morou nos Estados Unidos e levou junto o filho dele e o filho dele escreve no mesmo jornal que o meu pai!"), lembrei-me de quando li Erico Verissimo pela primeira vez. Era mais velho do que o meu guri, uns 14 anos de idade, e já ouvira falar naquele livro que ganhei de minha mãe, O Tempo e o Vento. Por isso, abri-o com alguma solenidade – tratava-se de um clássico, de algo importante. Ao conhecê-lo, fazia eu também algo importante. E, de fato, vivi bons momentos naquele verão, graças à habilidade daquele velho escritor.
Hoje, guardo várias edições das obras de Erico e de O Tempo e o Vento em especial. Uma é formada por dois livros grandes, do tamanho das antigas enciclopédias, que teve tiragem limitada e numerada. Devia estar com uns 34 ou 35 anos de idade quando comprei essa edição. No dia em que a levei para casa, depois do jantar, me pus a folheá-la, sentado na cama. Resolvi ler o comecinho da história do Capitão Rodrigo. E não parei mais. Varei a noite, até de manhã, e li todo aquele volume outra vez. Ao fechar o livro, pensei: Erico se comunicou comigo quando eu era um adolescente e agora de novo, mais de 20 anos depois. Como poderia adivinhar que, passados mais 20 anos, ele voltaria a se comunicar comigo, através do meu filho?
Essa é a Grande Arte: é a que derrota o tempo. É a que mostra que os seres humanos, tendo eles nascido em Tóquio ou em Cruz Alta, tendo eles vivido na época do Twitter ou da ampulheta, seja como for e onde for, os seres humanos são iguais: vivem pela necessidade de ter o que amar. E pela ânsia de serem amados.