O primeiro show que Paul McCartney realizou em Porto Alegre, em 2010, foi o melhor da minha vida e, sei, o melhor da vida de muitas outras pessoas. Finalmente, um beatle estava entre nós. Não é pouca coisa. Lembro da bela música do Tavito, Rua Ramalhete, em que ele pergunta: "Será que algum dia eles vêm aqui, cantar as canções que a gente quer ouvir?".
"Eles" eram os Beatles. Tavito manifestava um desejo universal. O mundo inteiro queria ver os Beatles de perto, porque aquele grupo era o resultado de uma coincidência rara: a reunião de quatro músicos excepcionais, todos vivendo na mesma cidade, no mesmo tempo, havendo, entre eles, dois gênios. Paul McCartney e John Lennon eram como Mozart e Beethoven, Kant e Schopenhauer, Freud e Shakespeare. Ou como Leonardo da Vinci e Michelangelo.
Acontece que os dois últimos, Leonardo e Michelangelo, tiveram sua Liverpool: foi a Florença do começo do século 16. Neste tempo, ocorreu um fato extraordinário: um duelo entre esses dois gênios da humanidade.
Sou fascinado por essa história. Deveria haver livros e filmes a respeito, mas, pelo que sei, não há.
Michelangelo e Leonardo não se gostavam, e não por acaso: eles eram diferentes em tudo. Leonardo, 23 anos mais velho, media cerca de 1m90cm, era loiro, bonito e forte como um Maciste. Tinha o hábito de vergar uma ferradura com as mãos nuas. Vestia-se com roupas coloridas e, no fim da vida, deixou crescer a copiosa barba encaracolada que virou sua marca para a posteridade. Quando jovem, usava uma túnica cor-de-rosa que lhe ia até os joelhos, muito curta para a época e, por isso, motivo de certo escândalo entre os italianos.
Michelangelo, ao contrário, era baixote, meio corcunda e feioso. Tinha o nariz torto, quebrado por um soco que levou durante uma briga na infância. Michelangelo, aliás, vivia brigando e reclamando da vida, trabalhava sozinho e não confiava em ninguém. Já Leonardo era expansivo, alegre e afetuoso.
Eles só tinham duas coisas em comum: a genialidade e a homossexualidade.
Eles estavam sempre rodando de uma cidade para outra da Velha Bota. Assim, dificilmente se encontravam. Mas, naquele comecinho do século 16, ambos moravam em Florença. Então, foram contratados para fazer, cada um, um enorme mural representando uma batalha vitoriosa da cidade, qualquer batalha, à escolha deles. Só que os murais deveriam ser pintados em paredes opostas de uma sala no atual Palazzo Vecchio. Quer dizer: Leonardo da Vinci e Michelangelo trabalhariam um de frente para o outro. Ou, melhor: um de costas para o outro.
Um desafio terrível, mas eles tinham de aceitar: o pagamento era ótimo. E, de fato, aceitaram e começaram a trabalhar. Esse episódio, conhecido como A Batalha das Batalhas, mobilizou Florença e manteve a Itália em suspenso. Durante mais de um ano, os dois gênios terçaram pincéis, enquanto o mundo aguardava para descobrir, finalmente, quem seria o vencedor.
Como dois expoentes da humanidade deixaram-se manipular dessa forma? Como foi possível que homens sublimes acabassem reduzidos a galos de rinha, a duelistas vulgares, a cães de aluguel?
Bem. Isso foi possível porque o mentor da disputa chamava-se Nicolau Maquiavel. Sim, ele mesmo, Maquiavel, na época conselheiro dos Medici, convenceu os mandatários da cidade a promoverem a competição entre os gênios da arte. E convenceu os gênios a competirem.
O que demonstra uma verdade hoje reafirmada pela conjuntura brasileira: um político astuto é capaz de seduzir, controlar e embotar os cérebros mais talentosos. Diante de um político ladino, um artista é um pateta.
Ah! Quem venceu a disputa? Deu empate. Depois de algum tempo, os dois foram convocados para trabalhos impossíveis de ser recusados e suas pinturas incompletas foram cobertas por outras. O único vencedor foi Maquiavel, que deve ter se divertido muito nesse período. Os malvados espertos quase sempre vencem.