"Eu vi os Beatles", disse-me ela.
Era uma senhora magra, de sorriso faiscante, poucos anos mais velha do que eu. Estava na longa fila do cinema, que esticava o corpo de sucuri pela calçada, deixando o rabo dobrar indolentemente a esquina. Comigo, meu filho, Bernardo. Tínhamos nas mãos ingressos para assistir a Eight days a week, filme sobre as turnês dos Beatles nos anos 1960.
"Eu vi os Beatles", foi a frase dela, e isso fez com que a olhasse com mais respeito. Perguntei onde foi, como foi, conversamos rapidamente, até entrarmos na sala.
Calculei que vários dos que estavam lá deviam ter visto os Beatles. Estavam todos entusiasmados. Depois do filme, enquanto rolavam os créditos, ao som, óbvio, da música dos Beatles, eles continuaram sentados nas poltronas, cantando e batendo palmas. Ninguém saiu. Por Deus: ninguém. Eu e meu filho nos entreolhávamos e ríamos, achando divertido. Até que ele cansou e pediu:
– Vamos?
– Vamos.
Fomos.
Saímos sem que nenhum dos outros tivesse feito menção de se erguer da cadeira.
"Eu vi os Beatles".
Naquele público, poder dizer essa frase era como levar uma condecoração no peito.
Não só naquele público, é evidente. Anos atrás, quando Paul McCartney foi a Porto Alegre, ele era só 25% dos Beatles, e já nos emocionou. Foi o maior show da minha vida e da vida de muitos que foram ao estádio, tenho certeza. Saímos pela rua como que flutuando, olhávamos uns para os outros e trocávamos sorrisos de satisfação mútua.
Por quê? Porque vimos UM beatle. Vimos uma fatia da História. Participar de algo grandioso, mesmo que apenas como assistente, é provar que se está vivo.
As pessoas passam a vida tentando dar sentido à vida. É a lógica maior do casamento. Você se casa e tem filhos para ter testemunhas de que existiu. Você esteve em Paris e não contou para ninguém, não tirou fotos, não escreveu a respeito: você não esteve em Paris. Mas ir a Paris e registrar que esteve é levar junto um pedaço de Paris. E ter visto os Beatles é ser um pouco beatle.
"Eu vi Pelé jogar". Digo isso quando quero me exibir e ser um pouco Pelé. Na verdade, não é verdade: estava no estádio em que Pelé jogou, mas não lembro dele em ação dentro do uniforme branco do Santos, a bola colada à chuteira preta. Fui levado ao velho Olímpico pela mão do meu avô, era muito pequeno, da experiência restaram-me apenas as cores do estádio – o verde da grama perfeita, o branco da luz dos refletores, o azul ondulante da torcida... e o sabor dos três cachorros-quentes que comi. Isso e uma previsão do meu avô:
– Um dia, tu vais poder dizer que viste o Pelé jogar.
Pois digo. Vi.
Pode ficar admirado.
Vim e vi. Ele venceu.
Ou empatou. Ou perdeu. Não lembro.
Não importa. Importa é ter visto. É ter sido testemunha. Somos testemunhas de um tempo importante, um tempo de mudança do Brasil. E para melhor, tenho certeza. Daqui a alguns anos, quando fizerem filmes do que estamos vivendo hoje, poderemos dizer: "Eu vi o Brasil mudar". Os outros vão nos olhar com respeito. Vão perguntar como foi. E nós seremos condescendentes. Vamos sorrir misteriosamente, olhar para o horizonte como que recordando algo. E suspirar:
– Não foi fácil... não foi fácil...