Vi um cara sendo perseguido por um bando de perus, numa rua aqui de Boston. Perus literais, aves, sem nenhuma outra conotação. Há muito peru solto pelas ruas desta cidade. Não sei se você sabe, mas, no Dia de Ação de Graças, os americanos comem peru porque foi esse o prato principal de um banquete que os pioneiros fizeram logo depois de sua primeira colheita bem-sucedida, assim que chegaram à América, há 400 anos. Eles tiveram a sorte de encontrar índios amistosos, que lhes ensinaram o que plantar e mostraram como preparar um bom peru assado. Os americanos ficaram muito agradecidos e, por 10 anos, foram amigos dos índios. Depois, adquiriram o hábito desagradável de matá-los, e os índios se viram obrigados a se mudar mais para dentro do continente.
Desde aquela época, o peru é um animal bastante comum nas redondezas. Donde não ser absurda essa perseguição louca que testemunhei. O perseguido era um homem de uns 40 anos de idade. Ele estacionou seu carro numa grande avenida que corta praticamente toda a cidade, a Beacon Street, e desceu. Foi nesse momento que os perus atacaram, agressivos como se fossem apaches. Não sei o que o ser humano fez, sei que os bichos se irritaram com ele por algum motivo e foram para cima, gritando glugluglu bem alto.
A minha vó criava perus na sua casa, nos Navegantes. Mas os perus brasileiros são diferentes, muito menores. Esses perus americanos são do tamanho de um fogão de quatro bocas. Ou seja: é realmente assustador ser acossado por uma gangue de perus gigantes, que foi o que aconteceu com aquele infortunado bostoniano, na Beacon Street. Eram pelo menos seis perus. O cara os viu e saiu correndo. Ri e pensei: pusilânime! Os perus não desistiram, puseram-se velozmente no encalço dele, grugulejando.
É isso que faz o peru, sabia? O pato grasna, o pombo arrulha, a galinha cacareja, o corvo crocita e o peru gruguleja.
Aliás, sabe o que faz o camelo? O camelo blatera. Quem diria?
Mas, voltando às aves fulas, seis perus enormes e enraivecidos saíram grugulejando atrás daquele americano, que exclamou:
– Oh, my God!
E engatou a quinta marcha.
Eu vinha atrás, carregando duas sacolas de papel cheias de compras que fizera no supermercado. Gosto de ir ao supermercado. Não por consumismo, é que sinto prazer em caminhar pela rua. Além disso, esse supermercado é pequeno e os funcionários, todos moradores da vizinhança, são muito gentis. Eles têm o costume, bem americano, de elogiar a gente. É sempre algo meio neutro, como o sapato que você está usando, mas aquilo faz bem. Acho que já contei sobre uma salsicha que comprei um dia. Cheguei ao caixa e o funcionário, ao registrar a salsicha, quase gritou:
– Mas essa salsicha é muito boa!
Pisquei.
– É?
– Excelente! Ótima mesmo! No café da manhã, perfeita! Parabéns por comprar essa salsicha!
Saí de lá flutuando. Caminhei um pouco, sentei em um banco na calçada, olhei para a sacola do súper, tirei de lá a salsicha, admirei-a e pensei: que bom que comprei essa salsicha.
Mas o importante, agora, é que eu vinha do súper e vi o cara correndo dos perus e ri dele e percebi que ele não seria alcançado. Suas duas longas pernas primatas eram mais rápidas do que as dos perus. E, de fato, ele ganhou terreno e escapuliu, enquanto eu gargalhava, alguns metros atrás. Os perus compreenderam que não iam alcançá-lo e desistiram da caçada. Continuei caminhando. E, aí, eles fizeram meia-volta. E viraram para mim. Parei. Eles também. Notei que me encaravam com um olhar de ódio. Por quê? Eu nunca havia feito nada para eles! Nem americano sou, nem gosto de comer peru, nem festejo o Dia de Ação de Graças... Mas eles não ligaram para nada disso. Investiram em minha direção, grugulejando. E eu imitei o americano: corri por uma rua lateral, meio desajeitado com minhas duas sacolas. Fugi covardemente, confesso. Ao chegar em casa, a salvo, suspirei. E desatei a rir outra vez, pensando que a vida tem de ser assim: ir ao supermercado e se alegrar com uma observação do caixa. Carregar suas sacolas pela rua e, eventualmente, ter de escapar de perus em fúria. Tudo bem, tudo normal, é a vida real. Antes encarar a ira das aves de verdade do que o ódio virtual das redes sociais.