Nos distantes anos 1980, eu e meu grande amigo Sérgio Lüdtke trabalhávamos na velha Sulina, que era livraria, editora, papelaria e distribuidora de outras 65 editoras de todo o país. Uma potência – da época em que o Rio Grande do Sul formava potências.
O Sérgio era o chefe do Departamento de Promoção. Eu, seu humilde subalterno. Entre nossas tarefas estava a de acompanhar escritores em visita ao Estado. Assim, conhecemos muitos personagens interessantes. Eis alguns:
Henfil
O Henfil. Tratava-se de homem simples e divertido. Estávamos em uma fase anarquista na faculdade e o Sérgio contou isso a ele. Henfil ficou intrigado: não sabia nada de anarquismo. Então, o Sérgio discorreu brevemente sobre seus autores preferidos, o francês Proudhon e o russo Bakunin. Mais uma vez, Henfil confessou sua ignorância: nunca tinha ouvido falar naqueles caras. Mais tarde, ao fazer a dedicatória para o Sérgio, ele desenhou seus personagens no livro. O Fradim gritava:
"Aiô, Bakunin!"
E a Graúna, perplexa, perguntava:
"Proudhon?"
Amyr Klink
Amyr Klink não é uma pessoa avessa às outras pessoas. Ao contrário: é amistoso e simpático. Contou-me uma história espetacular.
Já o Amyr Klink recém havia escrito seu primeiro livro, Cem Dias Entre Céu e Mar. Esperava encontrar um sujeito meio retraído, meio estranho. Afinal, ele passara cem dias sem a companhia de qualquer outro ser humano, no meio do oceano. Mas não, : ele morava em Parati, na casa de uma senhorinha de 80 anos. Uma vez, discutiu feio com um amigo. Ele nunca tinha brigado, mas, nesse dia, enfureceu-se a tal ponto, que quis desferir um murro no outro. Ergueu a mão e mandou um mata-cobra. Só que errou o alvo – acabou atingindo o vidro da janela, que se quebrou e, como uma guilhotina, cortou-lhe o braço à altura do pulso. A mão ficou pendurada, quase amputada. O amigo, vendo aquilo, desmaiou de horror. E a senhorinha, ao ouvir o barulho, acorreu para ver o que estava acontecendo. Deparou com o Amyr Klink coberto de sangue e o corpo do amigo ao chão. Desmaiou também. E lá estava o Amyr Klink, tendo de se preocupar com a própria mão quase decepada e os dois corpos estendidos no chão.
João Antônio
Outro personagem maravilhoso foi o João Antônio. De todos, o mais simples. Andava de chinelo de dedo em um tempo em que chinelo de dedo não era fashion – era coisa de sem-terra. Usava calças jeans surradíssimas. Uma tarde, sentou-se nos degraus da escadaria do Viaduto da Borges, pediu que me acomodasse ao seu lado e pôs-se a discorrer sobre as limitações do texto jornalístico.
– Você leu meus livros? – perguntou.
– Todos.
– Como posso voltar a escrever lides depois de ter alcançado esse tipo de linguagem?
Concordei com ele. A linguagem dos contos de João Antônio tinha o balanço de seus personagens. Leia Meninão do Caixote e você concordará.
Alfredo Sirkis
Quanto ao Alfredo Sirkis, eu tinha enorme expectativa quando fui designado para acompanhá-lo. Ele havia sido guerrilheiro da VPR, participara dos sequestros dos embaixadores alemão, japonês e suíço, passara anos no exílio e escrevera pelo menos um clássico sobre essa época, Os Carbonários. Esse livro é muito bom. Os que o sucederam, Roleta Chilena e Corredor Polonês, nem tanto, mas, ainda assim, são interessantes. Só que Sirkis estava em Porto Alegre para lançar um livro de ficção, Silicone XXI. A trama se passava no Rio de 2019, um futuro distante...
Na fabulação, Sirkis não conseguiu repetir o "punch" de seus livros de memórias. Eu mesmo havia lido todos e me interessava em perguntar sobre os que tratavam do regime militar, mas Sirkis não parecia disposto a entrar no tema. Falava apenas do seu romance. Achei que fosse implicância comigo, até que o levei para uma entrevista de duas horas na televisão com a Tânia Carvalho. Que abriu o programa perguntando a Sirkis exatamente o que eu perguntaria: sobre seu tempo de guerrilheiro. Ele foi seco:
– Não quero falar sobre isso. Quero falar só sobre o meu romance.
E agora? A Tânia tinha duas horas de programa de TV para preencher, e o homem só queria falar de seu livro de ficção... Foi aí que vi uma craque em campo. Ela conseguiu levar a entrevista até o fim, apenas roçando no assunto da guerrilha. Fiquei espantado.
Lembrei desse episódio ao ver o vídeo do ator Pedro Cardoso se retirando de um programa de TV, recentemente. Ele foi convidado para participar do programa e aceitou. Chegando lá, entrou no estúdio, botou o microfone, sentou-se, deu um discurso e saiu. Não vou me ocupar dos motivos que o levaram a fazer isso, não me interessa saber se ele estava certo ou errado, não suporto mais a politização de todos os episódios da vida brasileira. Penso, apenas, nos produtores, nos apresentadores, nos profissionais que estavam trabalhando para fazer o programa. Coitados. Porque, afinal, nem todos são Tânia Carvalho.