Durante 23 anos, o juiz Sidinei Brzuska manteve um rotina que combinou o trabalho em gabinete com visitas aos presídios gaúchos. Primeiro em Santo Ângelo e Santa Rosa (de 1997 a 2002), depois em Santa Maria (2002 a 2008) e, desde 2008, em Porto Alegre. Foi na capital gaúcha, ao assumir a Vara de Execuções Criminais (VEC), que ele se tornou um símbolo da exposição pública das mazelas do sistema penal. Nenhum outro juiz tomou a dianteira como Brzuska para tentar mudar a realidade de cadeias superlotadas, loteadas entre facções que controlam, de dentro das celas, o tráfico de drogas. Em entrevistas, debates, reuniões com governadores, ministros e até com o presidente do Supremo Tribunal Federal, apontou para a necessidade de mudança. Chegou a ser responsável por 27 cadeias com 14 mil presos. Em junho, decidiu abandonar a fiscalização dos presídios e se dedicar à 3ª Vara Criminal de Porto Alegre. Nesta entrevista, explica os motivos da mudança, faz um balanço e conta os bastidores dessas mais de duas décadas de atuação.
Por que o senhor deixou a vara que cuida dos presídios?
Cansaço. Um resumo das razões é isso: cansaço. Não é algo que eu não goste, mas é cansativo.
Pela frustração?
Esgotou. Tenho que dar espaço para outras pessoas. Esse esgotamento decorre de várias coisas. Você fica muito tempo dentro do sistema, que está sempre em transformação, e você vai ficando sozinho a ponto de não ter mais com quem conversar. E olhar o sistema como um todo cansa muito. Você pode ficar nessa vara e não se expor, ficar na sua.
O senhor se expôs. De certa forma, é atualmente a face mais visível da discussão sobre uma sistema de execução penal que não funciona.
Eu quis me expor porque entendia que precisava de ajuda de outros para resolver o problema. É necessária essa exposição de apontar publicamente os problemas porque você precisa de ajuda, se não os problemas não são resolvidos. E não era uma exposição visando à satisfação pessoal.
É papel do juiz ajudar a resolver os problemas?
Sim, à medida que a Vara de Excuções Criminais também fiscaliza os presídios. Um exemplo: entro no Madre Pelletier (presídio feminino de Porto Alegre), existe um local chamado Galeria Creche, com 32 crianças, sendo que 24 delas nasceram e viveram ali dentro e sequer tinham certidão de nascimento. Crianças com três anos que nunca haviam colocado o pé fora da cadeia. Bem, eu tinha um problema, e não era da minha sala que ia resolver isso. Tinha de mostram a mais pessoas para encontrar uma solução. E isso foi resolvido.
Em 2009, por conta da situação de emergência do sistema prisional, o senhor declarou que o Estado apenas controlava as cadeias até o portão. Dali pra dentro, o comando era dos presos. Passados 11 anos, isso mudou?
Não. O que mudou nesse tempo, especialmente nos últimos anos, é que houve um aumento expressivo da quantidade de dinheiro controlado pelas prisões, sobretudo com relação ao tráfico de drogas. Além disso, passamos a acompanhar a ida das facções criminosas para o Interior. Aquilo que se via mais restrito à Região Metropolitana em 2009 começou a se reproduzir com mais intensidade por outras regiões. E, quando se coloca mais dinheiro nos presídios, as facções passam a cuidar mais deles.
Tratam o tráfico nas cadeias como um negócio?
Sim. É como se tivessem se profissionalizado. Passaram a empresariar melhor o sistema. Isso, para mim, é fato. Até há pouco vínhamos tendo o problema da violência muito aguda, talvez não vista no Estado em um século. Passamos a ter as degolas. Acho que desde a Revolução Federalista (1893) nós não tínhamos tantas degolas no Rio Grande do sul. Isso tem origem lá atrás, ainda, na queda do traficante Paulão, da Vila Maria da Conceição, que acabou desorganizando, digamos assim, o tráfico naquela região, gerando um efeito dominó. Certa vez, uma mulher veio ao meio gabinete e me pediu para acabar com as mortes, porque já tinham morrido 50 pessoas na Conceição. Perguntei como eu poderia fazer isso. Ela respondeu: o senhor precisa colocar fulano, fulano e fulano na mesma cela. Se fizer, acaba com a desorganização do tráfico e com as mortes. Respondi que não me sentia autorizado, de jeito nenhum. Tinha certa lógica, que era colocar nas mesmas celas traficantes que já estavam presos para que eles pudessem dali tentar pacificar o lado de fora. Mas, moral e eticamente, eu não podia interferir dessa maneira. Depois disso, em 2016, essas mortes recrudesceram. Um dia eu fui até a Pasc (Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas), onde estavam os principais mandantes daquela carnificina toda. Cheguei para o diretor da penitenciária e disse: coloca esses presos numa sala. Um funcionário da administração ainda me perguntou se eu tinha certeza do que estava pedindo. Fiz isso, pedi que os guardas saíssem e ouvi todos os líderes das facções. E disse que a violência que eles estavam promovendo tinha passado de todos os limites. E aí ouvi algo que talvez não estivesse preparado para ouvir. Acontece que, quando morre alguém próximo a eles de forma muito cruel, o desejo de vingança é muito grande. Só a morte de um inimigo não é mais suficiente para aplacá-la, tem de ter requintes de crueldade. E um deles havia perdido o filho, o outro, o pai, o outro, o irmão. Todos tiveram perdas cruéis e muito próximas. Percebi que a coisa estava de tal modo quebrada que não tinha como resolver com uma conversa. a violência seguiu.
Lutei tempo demais pela construção de presídios e pela abertura de vagas. Hoje, do jeito que está, sou contra. No modelo que temos aqui, isso só vai aumentar o problema e dar dinheiro para as facções. Com novos presídios, só vai lotear o Estado no controle do tráfico.
E um ano depois, em 2017, ocorre a operação Pulso Firme (transferência de líderes de facção para presídios federais fora do Rio Grande do Sul.
Autorizei a transferência para presídios federais de todos os que estiveram naquela reunião. Acredito que uma das razões pelas quais ninguém deu um pio foi porque eles associaram a transferência àquela conversa. Se tivessem reduzido a violência, talvez não fosse necessário.
Qual foi a consequência daquela operação? As autoridades de segurança consideram a transferência exitosa.
Aquilo acelerou muito a profissionalização da facção e a redução da violência externa para não se perder dinheiro. Presos que não foram transferidos – o Ministério Público pediu, mas não autorizamos – ficaram sabendo disso. Um deles me procurou para dizer que perderam muito tempo na guerra. “Nós vamos parar de guerrear e passar a ganhar dinheiro no crime”, falou. Um preso me disse isso, depois da operação Pulso Firme.
A violência desmedida atrapalhava os negócios?
Exatamente. Agora descobriram ramificações do PCC aqui no Estado. Na verdade, é só mais um passo da amplificação do poder desses grupos.
A presença do PCC não é novidade nos presídios gaúchos. como foi possível eles se infiltrarem, à medida que o crime é loteado entre grupos locais?
Não existe uma razão. É fato que essas facções do centro do país têm maior controle sobre rotas internacionais. Tendo esse controle, eles precisam do contato com as facções locais para distribuição. Certa vez, conversando com um desses presos transferidos para o sistema federal, perguntei como estava a relação com as facções nacionais. Ele respondeu: “Olha, tem um fornecedor de Leite Ninho no Brasil, então sou obrigado a ter uma relação com esse fornecedor”. Agora, não é simples estabelecer relação de confiança com quem nunca viu. O contato se dá com a transferência de presos para o sistema federal.
O que mantém as cadeias de pé são duas leis que não estão escritas, mas que existem: ‘bandido bom é bandido morto’ e ‘presídio, quanto pior, melhor’. É a aplicação disso que nos deixa na situação atual.
É assim que o PCC se expande pelo Sul?
É assim que ele se fortalece. Porque o preso daqui fica no mesmo pátio que o cara do PCC. Pode conversar olho no olho. Não é a causa única, mas isso é um fator. Certa vez em que eu estava na minha sala atendendo a uma advogada de um desses presos, tocou o telefone. Era o advogado do Fernandinho Beira-mar. Ela sai da minha sala, atende e depois volta dizendo: “Vou ter de ir na Pasc dar um recado para o meu cliente”.
A transferência para o sistema federal não isola o preso como deveria?
Não. A saída daqui pode até quebrar individualmente o negócio de uma pessoa. Mas a estrutura do crime, não. Agora, a transferência como aconteceu na Pulso Firme era necessária, porque nós tínhamos perdido o controle da violência. Só não se pode dizer que isso seria a solução do problema. Acaba criando um problema lateral, que pode ser mais grave lá na frente.
O senhor passou 12 anos na Vara de execuções criminais e sai dizendo que o sistema piorou. Fica alguma frustração?
Um pouco, sim. Mas há muita satisfação, também, porque essa situação é impossível de ser modificada com poucas mãos e em pouco tempo. É preciso o Judiciário, o Ministério Público, as autoridades de segurança e sobretudo a sociedade como um todo agirem.
O ícone da falência do sistema carcerário local é o Presídio Central. Todos os ex-governadores recentes prometeram e não conseguiram resolver o problema. Agora não se fala mais, mas ele continua ali. É um problema sem fim?
Não posso dizer que é um problema sem solução. Mas não é um problema que se vai resolver só pela secretaria do sistema penitenciário. Há questões bem mais complexas ali. Lutei tempo demais pela construção de presídios e pela abertura de vagas. Hoje, do jeito que está, sou contra. No modelo que temos aqui, isso só vai aumentar o problema e dar dinheiro para as facções. Com novos presídios, só vai lotear o Estado no controle do tráfico de drogas. O Central precisa ser enfrentado no longo prazo, com medidas de desencarceramento. E não estou dizendo que isso é para soltar pessoas que cometeram crimes e precisam pagar suas penas no fechado. Falo em reduzir a entrada.
Mas deixar de prender?
Não. Cometeu crime, tem de prender. Crime grave, pena alta. Mas veja só: faz 30 anos que a maioria dos crimes é cometida por pessoas que abandonaram os estudos na adolescência. Então, é lógico que uma medida para diminuir os presos é reduzir a evasão escolar. Na minha visão, investir nisso é o desencarceramento. Mais de 95% dos presos em flagrante são jovens desempregados sem instrução. Então, uma política de desencarceramento é dar um primeiro emprego para o jovem adulto.Estamos aqui, você me entrevistando e eu como juiz em decorrência de decisões que tomamos entre os 12 e 18 anos. A adolescência é fundamental. O adolescente precisa da sensação de pertencimento. Você pertence ao quê? Pode ser ao quartel, aos escoteiros, ao time de futebol, ao coral. Esse pessoal que está nas vilas à mercê das facções pertence ao quê? Antes de desativar o Central, todos os órgãos precisam responder: o que será feito para que o adolescente não abandone o colégio, para que se envolva com algo no seu bairro que não seja o tráfico. Se você faz isso por 10, 15 anos, resolve o problema do Central. Foi assim nos países que fecharam as suas cadeias.
Houve momentos em que suas decisões descontentaram governadores. Algum deles exerceu pressão política sobre o senhor?
Sim. Houve um pedido do Ministério Público no seguinte sentido: se não tivesse vaga para todo mundo, que se privilegiasse quem já está dentro do sistema, vagas do semiaberto. Ao invés de pôr um condenado vindo da rua no semiaberto, bota um que já está no sistema porque ele já tem preferência. Esse foi o pedido do Ministério Público. Acabei acolhendo esse pedido. Depois isso até foi aceito, mas na época nós estávamos há muitos anos sem presos em delegacias porque essa decisão faria com o preso ficasse em delegacia. Na época, nem se imaginava isso. E essa decisão foi no final do mandato de Yeda Crusius, que buscava a reeleição para governadora. Ali houve uma pressão por parte do Executivo estadual.
Qual foi a mensagem que chegou ao senhor?
A mensagem que chegou para mim é que, se aquilo não fosse contornado, a Yeda teria dado uma decisão diferente na liberação dos recursos dos depósitos judiciais, parando a obra da construção do foro cível. Tenho conhecimento de que secretários foram falar com o presidente do tribunal na época.
Ele cedeu?
Não. Essa foi uma pressão política, uma tentativa de mudar uma decisão pela via do recurso.
O problema do uso da droga com fim recreativo é que ela tem um efeito muito danoso no jovem, no guri de 12, 14, 15 anos. É nessa fase da vida que você toma as decisões importantes. Minha única reserva à liberação da maconha é a forma como nós controlaríamos o acesso dessa camada da população. Meu medo em relação à maconha é com esse jovem. Pode potencializar a criminalidade a partir dele.
Uma das mensagens que o senhor mais transmitiu, seja nas decisões ou manifestações públicas, foi a de que o problema dos presídios se reflete no crime do lado de fora. O que mantém as cadeias de pé são duas leis que não estão escritas, mas que existem, estão na cabeça das pessoas. A primeira é que “bandido bom é bandido morto”. A outra é: “presidio, quanto pior, melhor”. É a aplicação disso que nos deixa na situacao atual. O Brasa (Valmir Benini Pires, condenado por roubo e morto em 2017) foi o primeiro chefe de facção a perceber isso. Ele soube ganhar dinheiro e poder dentro das cadeias. A lógica dele era simples: não precisa dar colchão, eu consigo. Cobertor, comida, essas coisas, tudo comigo. E ele passou a comercializar dentro da prisão. Depois veio a questão das drogas, que potencializa isso. Entra a questão da integridade física. Quando qualquer pessoa é presa, a primeira preocupação é com a vida. Entrou na cadeia, quer proteção. E quem pode dar isso dentro da cadeia? A facção. Aí o cara se vende, se alia, fica defendo favores. A cadeia ruim alimenta o sistema. Esses dois estigmas alimentam os vícios do sistema.
Como as milhares de fotos que o senhor fez das cadeias contribuíram para expor o sistema?
Ainda em Santa Rosa, na década de 1990, eu era convidado para inaugurações, solenidades, Dia dos Pais, Dia das Mães. Sempre levava minha câmera. Percebi que os presos faziam questão de posar. Eu revelava e dava as fotos para os presos. Eles se impressionavam. Passei a perceber que vários presos não tinham fotos com a família. Isso antes das câmeras digitais. Eles colavam as fotos na parede da cela. As celas com fotos de família eram mais limpas e organizadas; era uma espécie de símbolo de respeito à família. Em Santa Maria, eu ia ao presídio, tirava foto e colava no processo. Eu quis tornar cada processo uma pessoa. Nunca soltei nem deixei preso ninguém sem olhar nos olhos. Em 2008, quando vim a Porto Alegre, passei a me empenhar mais na produção de fotos para poder mostrar o sistema. Essas imagens foram mostrada até na Organização das Nações Unidas (ONU), quando se discutiu o sistema carcerário. A foto é um documento para a transformação. Um dos efeitos importantes da foto foi que, quando cheguei aqui (na Vara de Execuções Criminais), percebi que havia um descontrole sobre as mortes. Os presos morriam, e a informação não circulava, demorava para chegar. Passei a ir aos locais e fotografar o cadáver. Quando morre alguém dentro do sistema, sempre tem um tentativa de abafar a responsabilidade. Eu chegava no local e fazia a foto. Essas fotos ajudaram a esclarecer muita coisa, mais do que decisões judiciais.
As fotos que o senhor fez também serviram de base para o debate sobre as mortes dentro das cadeias. Sim, a cada morte confirmada dentro de cadeia, eu ia até o local e fazia fotos. Notei que, ao longo dos meses, as mortes diminuíram. Ter o registro em imagem do corpo constrange os presos a promoverem violência na cadeia. Tenho certeza de que isso foi fundamental para a redução, tanto que os números mostraram isso ao longo do tempo.
A descriminalização da maconha é um debate que avançou em outros países. Qual é a sua opinião sobre o tema?
O problema do uso da droga com fim recreativo é que ela tem um efeito muito danoso no jovem, no guri de 12, 14, 15 anos. É nessa fase da vida que você toma as decisões importantes. Depois, passa a vida inteira colhendo os frutos do que decidiu nessa idade. E o sujeito viciado nessa fase vai ter a tomada de decisões muito dificultada. Estando normal já é difícil tomar decisões nessa idade. E ainda drogado... Prejudica bastante. Minha única reserva à liberação da maconha é a forma como nós controlaríamos o acesso dessa camada da população. Meu medo em relação à maconha é com esse jovem. Pode potencializar a criminalidade a partir dele.
Muitos atribuem a força do tráfico ao fato de a maconha não ser legalizada.
Acho que essa tese tem razão também. Mas não tenho pronto esse desenho. O que posso afirmar é que a forma como nós fazemos está errada, porque a gente entrega só à política o enfrentamento às drogas. Hoje, como é que você enfrenta o tráfico? Com polícia. Como? Apreendendo droga. Quando você apreende droga e você não mexe nos pontos de venda nem na questão do consumo, é enxugar gelo. Porque tendo o ponto e tendo consumo, você descapitalizou o traficante. E ele vai fazer o quê? Capitalizar a si próprio com roubo. Apreensão de droga como a gente faz potencializa o roubo porque o cara tem de se capitalizar para abastecer as bocas. Você prende o traficante, vai criando vácuos de poder onde ainda não tem facção, disputa e isso gera homicídios. Se você vai pelo caminho da proibição, que é o que temos hoje, teria de ser um ciclo completo. Você vai ter que tratar o ponto, “aqui não pode mais vender”. E isso não depende só de polícia. Depende de emprego, de cultura, de lazer, de um monte de coisa. Você vai ter de tratar o viciado. E isso é na clínica. O sistema atual é ruim porque potencializa o crime.