Duas grandes reformas, a do Trabalho (2018) e a da Previdência (2019), abriram caminho para o debate mais profundo sobre a necessidade de mudanças estruturais e ajuste fiscal que devem pautar as discussões políticas até o fim do ano. Uma delas é a necessidade de reforma administrativa, que o governo Jair Bolsonaro prometeu apresentar nos próximos dias. A outra, mais complexa, é a alteração nas regras tributárias.
Entre 2016 e 2018, o economista Marcos Mendes trabalhou no Ministério da Fazenda (atualmente pasta da Economia) na elaboração de projetos que resultaram na proposta do teto dos gastos e do regime de recuperação fiscal (RRF) dos Estados. Fora do governo, escreveu o livro Por que é Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil? (Editora Elsevier). Apesar do avanço no debate, ele critica a estratégia do Poder Executivo na condução das propostas e aponta para os riscos de aprofundamento da crise se o país não levar as mudanças adiante.
Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil?
Primeiro, é difícil fazer reformas em qualquer lugar do mundo. No Brasil, é mais difícil ainda. Fazer reformas é basicamente quebrar privilégios. Quando se faz reforma da Previdência, são eliminadas aposentadorias de alto valor. Quando se faz uma abertura da economia, você está desprotegendo determinados setores específicos. Na reforma administrativa, você limita salários elevados. Esses grupos de pessoas prejudicadas, em geral muito bem posicionados politicamente, têm todo o interesse em se organizar para bloquear mudanças. Por outro lado, a execução da reforma produz um benefício difuso para toda a sociedade. As pessoas em geral nem sabem que estão sendo beneficiadas, não entendem a questão e não se mobilizam tanto quanto quem é contrário. Outro ponto é que, quando a reforma acontece, o custo vem no curto prazo e o benefício, no longo prazo. Isso em qualquer lugar do mundo. No Brasil, a coisa é mais difícil ainda por várias fatores. Somos um país grande e heterogêneo. É muito mais fácil fazer reformas em nações pequenas, onde é governo unitário. Nós, aqui, temos um sistema federativo. A reforma tributária é um exemplo: será necessária negociação entre União, Estados e municípios para sair.
As reformas combatem privilégios, o que muitos classificam como direitos adquiridos. A própria noção de direito adquirido é um privilégio. Estabelecer que benefícios previstos em lei não podem ser mudados, apesar da necessidade do país, porque constitui direito individual de pessoa ou de um grupo, é bastante questionável. Em nenhum lugar do mundo está escrito na pedra que isso é um princípio fundamental do Direito. Outra coisa difícil no Brasil é a fronteira tênue entre os poderes. Uma lei aprovada na Câmara e no Senado pode ser derrubada pelo Judiciário. Na Inglaterra, por exemplo, isso simplesmente não pode acontecer.
Estudos dizem que a coesão social é fundamental para as reformas. O que é isso?
É mais fácil produzir reformas em sociedades mais coesas. São sociedades menos desiguais e menos violentas. O Brasil é uma sociedade muito desigual e muito violenta. E isso gera desconfiança das pessoas em relação ao próximo. É você não confiar nas pessoas com quem se relaciona. Se analisarmos pesquisas internacionais, o brasileiro é o povo que menos confia nas pessoas com que se relaciona. E num ambiente de desigualdade, violência e desconfiança é muito difícil fazer acordos sociais. E reforma pressupõe fazer acordo para mudar uma regra estabelecida.
Quais são os efeitos mais visíveis da não realização das reformas na história recente do país?
O mais visível é que há 40 anos o Brasil não cresce. Na década de 1950, o Brasil tinha praticamente a mesma renda per capita de Portugal e Espanha. Hoje, temos 40% da renda per capita da Espanha e metade da renda de Portugal. Aqui na América Latina, Colômbia e Peru sempre foram países da segunda divisão e agora estão ultrapassando o Brasil. Apesar de a Argentina se esforçar há 70 anos para ir para o buraco, nós ainda não conseguimos alcançar a renda per capita da Argentina. Por toda a parte, a taxa de crescimento de outras nações é muito superior a do Brasil. Nó travamos a economia, não fazemos a renda crescer e isso torna inviável tirar as pessoas da pobreza. Só com mais renda vamos ter melhores políticas públicas, melhor qualidade de vida.
A Europa passou por crise recente e conseguiu, com reformas, reverter o quadro. Qual é o país que pode servir de modelo reformista?
Portugal é um caso interessante. Embora tenha havido muita reação às mudanças, o país conseguiu fazer o ajuste fiscal que permitiu a recuperação da economia. E mesmo com a alternância de poder, com a ascensão do Partido Socialista, foi mantido o ajuste fiscal que garantia a recuperação do país. Isso demonstra uma superioridade em matéria de maturidade política em relação a nós. Outro caso exemplar é a Austrália. Assim como o Brasil, é exportador de commodities, de grande extensão territorial e que fez um conjunto de reformas de abertura da economia muito importante. Atualmente, a Austrália completa 30 anos de crescimento da economia.
Desde 2017, a agenda das reformas está mais presente. A da Previdência só não foi feita há três anos pela eclosão de uma crise política. Logo depois, veio a trabalhista. No ano passado, foi a previdenciária. E agora estamos prestes a ver a administrativa e, talvez, a tributária. O Rio Grande do Sul conseguiu aprovar uma reforma do funcionalismo.
Tem um caminho mais claro para impor reformas?
Vejo algumas dificuldades pela frente. A principal é a recusa do Poder Executivo em fazer negociação com o Congresso. O atual governo está praticando o que tenho chamado de presidencialismo de omissão. Ele faz a proposta, joga no Congresso e não negocia e não busca formar maioria para sua aprovação. Quando o governo abre essa vácuo de poder, o Congresso tende a tomar este espaço. Isso é um problema porque vários instrumentos de negociação estão sendo podados.
Exemplo?
Medidas provisórias são impostas com regras muito mais restritivas. O orçamento, que era um instrumento de negociação entre os dois poderes, se tornou obrigatório, então não tem mais a possibilidade de executar uma despesa sem negociar isso com o Congresso. Os vetos presidenciais, que são instrumentos importantes, estão sendo cada vez mais derrubados. A inapetência do Executivo para fazer negociação tem impedido as reformas de andarem num ritmo mais acelerado. Neste cenário, temos que ficar atentos a projetos que podem ser chamados de contrarreformas, propostas que reduzem o poder de impacto das reformas, de restrição de privatizações. Precisamos ficar atentos a isso. Nos Estados, o Rio Grande do Sul fez a sua reforma. Mas em Minas Gerais, o governador, pressionado pela corporações, capitulou e permitiu aumento desproporcional de salários para o funcionalismo. Isso abre caminho para outros Estados irem na mesma direção. Por isso, digo que não tem um caminho acelerado rumo às reformas, temos, sim, uma janela de oportunidade.