Magistrada há 31 anos, a desembargadora Carmen Gonzalez assumiu o comando do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-RS) no dia 13 para um mandato de dois anos em meio a debates nacionais sobre efeitos da reforma trabalhista e desemprego. A nova presidente vê com preocupação a alteração das regras da previdência, que motivou a aposentadoria, neste ano, de 291 servidores da justiça trabalhista no Rio Grande do Sul. Nesta entrevista concedida no gabinete da presidência do TRT, em Porto Alegre, ela fala também sobre a eficiência do judiciário do trabalho.
Quais são os seus desafios?
Temos um tribunal com mais de 3 mil funcionários, 247 juízes e 48 desembargadores. É um dos maiores do país. Minha preocupação é com a falta de funcionários públicos. Neste ano, perdemos certamente 300 funcionários. Faltam de 10% a 11% de servidores. O desafio é fazer o mesmo ou mais com menos gente.
Isso se reflete no tempo de julgamento?
Reflete em tudo. Porque se uma unidade judiciária precisa ter 12 ou 13 servidores – hoje temos oito, em média. Como reponho essas pessoas? É um prejuízo.
A pressão interna de desembargadores e juízes por mais gente é muito grande?
Claro. Como há pouco, ficam disputando. Temos regramento de que a prioridade é o juizado de primeiro grau, para poder sempre dar uma primeira resposta.
Passados mais de dois anos da reforma trabalhista, houve evolução?
A reforma trouxe muitas alterações. Mas não é verdade que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) estava defasada a ponto de não atender às necessidades da modernidade. Houve muitas alterações legislativas ao longo dos últimos anos. A reforma trouxe impacto importante de mudança na forma que o processo e o direito do trabalho sempre foram vistos. O maior problema que isso trouxe à classe trabalhadora é o fato de ter de pagar custas do processo. Até então o princípio da gratuidade vigorava. Isso trava o ajuizamento de reclamatórias trabalhistas. É evidente que se tu tem reclamatória contra teu empregador e não precisa pagar custas, não tem dúvida em ajuizar a ação. Agora, precisa pagar custas e correr o risco de arcar com honorários de sucumbência. De 2017 para 2018, houve redução de cerca de 30% no número de reclamatórias trabalhistas.
Mas isso não estabeleceu espécie de filtro para evitar ações improcedentes?
Está na nossa Constituição que o acesso ao Poder Judiciário deve ser amplo e livre para todos. Não considero que esses entraves sejam favoráveis, principalmente aos trabalhadores de baixa renda.
Houve reação de juízes que chegaram a ameaçar não respeitar novas regras da reforma.
É uma minoria dos magistrados que pode ter afirmado isso. No calor do momento e com falta de entendimento sobre as mudanças profundas nas leis, pode ter acontecido. Considero que (a reforma) foi feita sem estudo aprofundado. De qualquer forma, o magistrado tem a obrigação de julgar de acordo com os fatos, a legislação e a Constituição.
Não há um trabalho econômico que diga que há mais emprego pela redução do custo laboral. O que faz com que se tenha pleno emprego é o crescimento econômico.
CARMEN GONZALEZ
Presidente do TRT4
O argumento para a reforma é que ela modernizou a lei e possibilitou, por exemplo, o home office e o trabalho intermitente, quem rendiam muitos processos ao empregador. São avanços para criar empregos?
Primeiro, quero falar sobre essa quantidade de empregos prometidos. Sem criticar a reforma, mas apenas um dado objetivo: se consultar qualquer economista, da Unicamp mais à esquerda, à USP e FGV mais “central”, não há um trabalho econômico que diga que há mais emprego pela redução do custo laboral. O que faz com que se tenha pleno emprego é o crescimento econômico. Tem sido assim em todos os lugares. Se uma indústria vende cem canetas ao mês, por exemplo, por que ela vai passar a fabricar 120 se não tem mercado? Ela não vai produzir mais e, consequentemente, contratar mais se não precisar.
Normalmente, o empresário aponta o custo do emprego, com encargos, como algo que emperra as contratações.
Não sou empresária, sou magistrada. Mas tenho uma certa dificuldade em entender desta forma. Se olhar nossos processos, a média salarial dos trabalhadores é muito baixa. E a maior parte das reclamatórias trabalhistas é por mero descumprimento da lei. A maior parte é verba rescisória, horas extras e pouco mais. Pontualmente, questões mais complexas como dano moral, assédio, mas isso não é maior parte dos processos. A grande massa dos trabalhadores ganha dois salários mínimos. Isso dos que estão empregados. Temos outra massa que busca o reconhecimento do vínculo empregatício. Estas normalmente ganham isso, um pouco mais um pouco menos, e não têm nenhum outro direito como férias, 13o, que são o mínimo. A Constituição garante o trabalho como valor social. Não é por acaso que primeiro vem o trabalho como fator de que as pessoas possam se inserir no mundo.
Um dos temas polêmicos do momento é o trabalho aos domingos. Qual é a sua opinião?
O domingo é o dia naturalmente de descanso para as pessoas. Para quem é religioso, é o dia dedicado ao Senhor. É o momento em que as pessoas conseguem o contato familiar. A família tradicional: dois filhos, pai e mãe, avó, avô, quando é que essas pessoas vão se encontrar? Em que momento se um tiver folga no domingo, o outro, na quarta, na sexta? Pai e mãe, com os filhos, em que momento? A gente precisa se colocar no lugar do outro.
Mesmo com acordo entre patrão e empregado garantindo folga e respeito aos direitos do trabalhador? Há alguns dias, a presidente do TST, Maria Peduzzi, disse que em breve não se fará mais distinção entre trabalho no domingo com outro dia.
Falo em tese e sociologicamente. Atualmente, o dia tradicional de descanso é aos domingos. No comércio e serviços, pode-se (folgar) pelo menos um domingo a cada quatro e, na indústria, um a cada sete. Pela possibilidade de que passe o novo regramento, qualquer setor vai poder trabalhar domingo. Se homem e mulher trabalharem assim, com folga em dia diferente, como vão se organizar? Enfim, a lei tem de ser cumprida. Como pessoa, penso que é um prejuízo para todos. As pessoas precisam ter momento em que elas se encontrem.
A tecnologia está transformando os negócios e o trabalho. Como a senhora vê essas mudanças frente à lei atual? Cito o exemplo da função do cobrador de ônibus que tende a diminuir.
O mundo não pode parar. A revolução está aí, o trabalho 4.0 está aí. Essas funções, isso é inexorável, vão terminar. Mas num país como o nosso, que tem gravíssimas diferenças sociais, pois é muito diferente pensar na Noruega e em outros países que estão num patamar civilizatório de relações humanas e de proteção social, perder a função é muito diferente. Temos de nos preparar para as funções que vão perder, mas temos de pensar no que vai acontecer com essas pessoas. Para onde elas vão? A empresa vai ter a sensibilidade de realocá-los? Têm maneiras de fazer que são paulatinas e que evitam comoção naquele segmento social. Veja a nossa cidade, o que vemos? Aumento da população de rua, em todas as ruas. Voltamos a ter algo que não tínhamos, que são as crianças pedindo nas esquinas. Fico me perguntando o que aconteceu com essas pessoas.
Nos últimos anos, cresceu a crítica contra a justiça do Trabalho, principalmente por parte de políticos que questionam a existência desta instância. Como a senhora vê esse posicionamento?
A Justiça do Trabalho tem papel fundamental e merece nosso respeito. As pessoas que criticam deveriam conhecer melhor o funcionamento. Desta forma, evitariam dar opiniões que quase sempre são baseadas em informações errôneas e de quem desconhece a Justiça. É uma instituição com papel que atende à sociedade. É um mito, uma lenda de que a Justiça do Trabalho só defende trabalhador. Não é verdade. Julgamos de acordo com a lei. A maior parte das reclamatórias são procedentes em parte.
Uma resolução do CNJ restringe manifestações de magistrados em redes sociais. Qual é a sua opinião?
Nem deveria ser necessário uma recomendação deste tipo. É obrigação do juiz ter conduta ilibada, proba, falar o necessário, não se expor desnecessariamente. Estou nas redes sociais. Não podemos ficar fora do mundo, até para prestar contas eventualmente. Ali (nas redes) não sou só a Carmen Gonzalez, sou a presidente do Tribunal do Trabalho.