O desembargador federal Leandro Paulsen passou os últimos cinco anos debruçado sobre os recursos da Lava-Jato no Tribunal Regional Federal da 4° Região (TRF4), em Porto Alegre. As pilhas de processos sobre a mesa de seu gabinete, no sexto andar da sede da Corte, indicam a extensão do trabalho que ainda tem pela frente. Gaúcho de Porto Alegre, aos 49 anos – 23 deles dedicados à magistratura –, Paulsen faz um balanço do trabalho até agora. Afirma que o país tem razões de sobra para se orgulhar dos avanços da Lava-Jato. Discreto, é a primeira vez que recebe um jornalista para falar sobre os julgamentos da principal operação contra corrupção no país.
Como é a rotina de um desembargador da Lava-Jato. Mudou muito?
Já faz cinco anos. A rotina dos julgadores não mudou tanto. O que acontece é que passamos a ter essa operação toda sob os nossos cuidados e claro que tem uma responsabilidade associada a isso. Em alguns momentos, a gente precisou tomar cuidados com a questão de segurança, tivemos de lidar com a notoriedade do caso. Mas a rotina permaneceu a mesma. É uma das operações que temos. Do ponto de vista político, certamente é mais importante. Nesse sentido, a estrutura do poder Judiciário foi cunhada ao longo dos séculos. Quando as pessoas chegam ao tribunal, chegam com uma experiência bastante significativa. E os juízes começam a deparar com casos de alguma repercussão. Então, depois de 10, 15, 20 anos a gente já está acostumado com a repercussão das decisões. A gente não está aqui para agradar a todas as partes, nem conseguiria. Sempre tem um conflito de interesses. O que mudou foi a questão da notoriedade do trabalho.
Esse é um caso que apresentou o TRF aos gaúchos.
Tenho bem claro que a notoriedade dessa operação teve um efeito muito positivo para o amadurecimento político dos cidadãos. As pessoas passaram a entender um pouco a estrutura do Judiciário. É difícil para quem não é da área saber qual é a função de um procurador da República, de um juiz, as instâncias, é um sistema relativamente complexo. Isso, com a Lava-Jato, foi sendo explicado. É um ganho permanente. A operação vai ficar na história como algo acontecido e o ganho para todos nós, de entender mais o Judiciário e poder demandar deste poder mais resposta, é perene.
Qual é o ganho que a Lava-Jato deixa na história?
Apesar de todas as críticas que acontecem, vejo sobradas razões positivas para o brasileiro se orgulhar da Lava-Jato. Corrupção sempre houve, em todos os tempos, em todos os lugares. Agora, o que faz de uma nação mais preparada para enfrentar dificuldades é justamente encarar de frente seus problemas, conseguir apurar e enfrentar essas irregularidades, tirar as consequências para que se possa não ter mais isso como uma chaga tão grande. A Lava-Jato chama a atenção para o fato de que a corrupção é algo inadmissível numa sociedade que se pretende ser voltada mais a interesses coletivos e individuais, de permitir que as pessoas se desenvolvam, exerçam suas atividades, ganhem o seu dinheiro sem que o Estado tenha esse custo da corrupção. Isso é algo muito importante.
Tem algum paralelo com a história? Como ela será lembrada no futuro?
Cada momento histórico tem as suas circunstâncias. A Lava-Jato não surgiu de repente. Ela também está contextualizada. Para mim, o primeiro grande marco de combate à corrupção foi o mensalão. Foi um marco que dividiu dois momentos, aqueles em que as pessoas que tinham condição econômica e poder político muito elevados não eram responsabilizadas e o momento que essas mesmas pessoas passaram a ter de responder, prestar contas, entender que seu mandato só se legitima pelos valores que inspiram o funcionamento da coisa pública. Vem na sequência desses esforços, alguns anos depois, mas já rompida aquela barreira de que algumas pessoas jamais seriam alcançadas. Quem trabalhou na Lava-Jato chegou até a resultados um pouco mais fortes porque se chegou a figura do ex-presidente da República. A Lava-Jato também conseguiu avançar muito nessa parte promíscua do setor empresarial com a coisa pública. Isso tudo aconteceu a partir do trabalho muito sério do juiz Sergio Moro, que teve outros processos bem importantes, como o caso do Banestado.
Todas as condenações que aconteceram em primeira instância e, depois, confirmadas no tribunal contaram com robusto suporte probatório.
LEANDRO PAULSEN
Sobre sentenças da Lava-Jato
Mas o que difere a Lava-Jato das demais?
O que a gente teve foi um comprometimento muito grande de todas as autoridades para que as coisas realmente fossem concluídos, levadas à julgamento.
Nos seus votos em julgamento, o senhor elogiou novos instrumentos de combate à corrupção. Um deles é a delação premiada, que gerou controvérsia no meio jurídico. A delação como aconteceu na Lava- Jato é um avanço?
A delação é criticada e isso é novo para nós porque ela vem de 2012 na Lei das Organizações Criminosas. Mas é um instrumento que foi sendo desenvolvido há muito tempo, desde a experiência italiana com as máfias, depois com a criminalidade em geral. Como são estruturas muito grandes e profissionais voltados ao crime, a possibilidade de teres alguém que integrava o grupo e tinha a confiança das pessoas revelando o modus operandi é muito importante. Às vezes, é a única maneira de dar sentido àqueles indícios que vão sendo apurados e encontrar novos caminhos de investigação. A Lava-Jato fez um uso importante da delação. E o efeito foi extraordinário do ponto de vista da apuração destes crimes. Uma coisa é pegar um caso isolado de corrupção. Outra é compreender como isso funcionava dentro de uma estrutura de exercício de poder. Pode-se colocar alguma ressalva. Essa delação tem de ser tomada com muito cuidado pelos julgadores porque a pessoa está ali esperando, digamos, salvar a própria pele. Mas isso a própria lei exige quando ela diz que não se pode condenar alguém em cima da palavra de um colaborador. Sempre tem de ter conjunto probatório para poder chegar à condenação.
Tudo que veio da Lava-Jato em matéria de delação foi acompanhado de provas contundentes?
Todas as condenações que aconteceram em primeira instância e, depois, confirmadas no tribunal contaram com robusto suporte probatório. O que não é comentado é que, além dessas condenações, houve também muitas pretensões condenatórias do Ministério Público que não se comprovaram em juízo. Em alguns, verificamos que havia indícios de crimes mas que não davam aquela segurança para proferir um juízo condenatório e ir para casa e dormir tranquilo, que é o que fazemos aqui. Apesar de todos os efeitos políticos que essas decisões tiveram, o fato é que nós, da 8ª Turma, sempre tivemos muita tranquilidade e trabalhos com muita isenção. Nunca estivemos a serviço de projeto político nenhum, aliás todos os governos precisam estar sob controle. As pessoas dizem: “ah, falam de muito de partido, agora se fala muito de outro”. Claro, sempre se controla o partido que está no poder, que pode tomar decisões agora e que tem a chave do cofre.
Lula e o PT mantêm a linha de que foi um julgamento político. Como o senhor recebe essa posição?
Olha, não foi julgamento político. Foi, sim, um julgamento da estrutura permanente do poder judiciário. Os juízos, a 13ª Vara em Curitiba e a 8ª Turma em Porto Alegre, já estavam constituídos desde sempre. O processo veio para esses juízos por sorteio. Não houve mudança de nenhum integrante. Foram julgamentos dentro das regras. É compreensível que haja visões políticas sobre isso. Mas o nosso papel não é fazer escolhas políticas.
Incomoda o senhor o fato de colocarem o seu trabalho sob suspeita?
Claro que é desagradável quando as pessoas te atribuem uma conduta que não te veste. Quando ouvimos que agimos de uma ou de outra forma num caso ou até, em toda essa operação, de modo parcial, é algo desagradável e injusto. Mas somos autoridades constituídas, estamos aí trabalhando. E essas questões políticas fazem parte do processo político que não é o nosso. Apesar de todas as críticas, as instituições vêm funcionando muito bem. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O nosso sistema eleitoral também. As pessoas fazem as suas escolhas, às vezes percebem que escolheram mal e voltam atrás. É natural. A gente está conseguindo lidar com questões muito sérias para o país em um ambiente muito sério.
No caso do triplex, houve um intervalo de 196 dias entre a primeira e a segunda condenação. Foi o julgamento mais rápido dos processos da Lava-Jato. A defesa de Lula aponta celeridade atípica do Judiciário.
Existem normativas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que determinam que se tenha uma atenção especial nos processos relacionados a crimes contra a administração pública. Claro que, quando estamos falando em crimes tão graves como os praticados pelo primeiro e segundo escalão do governo, merecem, sim, uma atenção especial porque os efeitos danosos para a sociedade são muito profundos. Mas o nosso trabalho foi feito num momento oportuno, não tínhamos motivo para retardar o julgamento quando já tínhamos condições de fazê-lo. Agora, no segundo julgamento, também houve referência de que se teria corrido. De modo algum. No caso do recurso do sítio, não tínhamos nenhum outro processo da Lava-Jato pendente. Cada processo tem a sua complexidade. Ficaria realmente envergonhado da minha atuação se tivesse um processo para ser levado à julgamento e não o fizesse. E, isso sim, seria uma violação. Não podemos criticar o Judiciário porque ele está julgando.
Qual é a sua percepção sobre a mudança de entendimento da prisão em segunda instância entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)?
Com certeza houve um retrocesso. Já ocorrera antes esse retrocesso. A praxe no país sempre foi a prisão para cumprimento de pena a partir da condenação em segunda instância. Alguns anos atrás é que o STF retrocedeu. E já foi no bojo dos escândalos de corrupção dos altos escalões do governo. Depois, o Supremo voltou atrás e agora retrocede novamente. Sinceramente, tenho uma visão muito clara: apesar de todos os argumentos jurídicos que se possa trazer, a literalidade da Constituição não contribui para uma decisão mais fácil quanto a isso, não funciona um sistema de justiça penal em que uma prisão dependa da palavra de um ministro da Corte constitucional. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. Não há como se submeter todos os casos penais à chancela de um dos 11 ministros. Não faz sentido, não é papel deles. Isso é uma concentração de poder que não é boa. Os juízes são preparados para tal. Nos tribunais, temos mais experiência ainda. Sempre se julga em colegiado para diminuir o risco de erros. E em um determinado momento, as coisas têm de ter efeito. Não podemos ter medo de fazer cumprir as decisões que a gente profere. Se, eventualmente, há julgamentos que não são bons, isso não justifica jogar o momento do cumprimento da pena para o carimbo do ministro.
Não funciona um sistema de justiça penal em que uma prisão dependa da palavra de um ministro da Corte constitucional
LEANDRO PAULSEN
Sobre prisão após 2ª instância
Além do ex-presidente, outros sete réus foram soltos em seguida à mudança do entendimento. O senhor vê algum casuísmo na decisão?
Temos um sistema de justiça penal que tem de ter efetividade. Quando o legislador comina determinadas penas para condutas que são graves para a sociedade, as pessoas, efetivamente, devem ter naquela cominação um freio para suas atitudes. Isso só vai acontecer se quem cometeu um crime vai deparar com a responsabilidade que ali está posta. Se isso não ocorrer, a pessoa não teme e naquele juízo de custo benefício, sendo a punição muito rara, a chance de continuarem na criminalidade é muito grande. Não existe razão para ficar postergando.
O caso do copia e cola da decisão da juíza Gabriela Hardt. Qual é o limite para que um juiz reproduza trechos de sentenças em outras decisões?
Temos de diferenciar bem os casos que foram trazidos a julgamento. No primeiro caso, houve o uso numa sentença de excertos de uma petição do Ministério Público. É muito provável que isso tenha acontecido por equívoco, que a juíza e sua assessoria tenham tomado um determinado trecho e tenham usado inadvertidamente, por concordar com aquela tese, mas feito suas as palavras que eram do Ministério Público. Isso a gente não tem como aceitar porque nós temos de resguardar a independência do magistrado. O magistrado até pode tomar como seus os argumentos das partes, mas tem de justificar reproduzindo e demonstrando que concorda com aquele posicionamento. Agora, simplesmente se usar da peça de defesa ou acusação é temerário e, por questões de segurança, não podemos permitir que isso aconteça.
Ainda mais em um caso rumoroso e delicado.
Diria que em qualquer caso, que envolva qualquer pessoa, com ou sem notoriedade. Se a sentença reproduzir as alegações do Ministério Público, a sentença é anulada. Agora, uma situação bastante diferente é o juiz proferir uma sentença em um caso e em um caso semelhante a seguir aproveitar argumentos que já desenvolveu.
O senhor ficou surpreso com as mensagens vazadas que mostraram a relação mais próxima entre o juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, no episódio conhecido como Vaza-Jato?
Aquilo não me incomodou. Queria destacar a firmeza na percepção de que a gente deve resguardar a liberdade de imprensa. Temos de ver com naturalidade que eventuais notícias circulem sobre autoridades porque é do interesse público saber o que está acontecendo. Outra situação é o que se tem ali, isso realmente coloca em xeque a imparcialidade do magistrado, que tipo de relação existe entre a Justiça e o Ministério Público. Na Lava-Jato, muitas pretensões do Ministério Público não foram acatadas. Se olhares as sentenças do juiz Sergio Moro, verás que ele não foi um juiz com mão pesada, foi um juiz muito criterioso. De todas as prisões requeridas, um percentual muito menor do que era pretendido pelo Ministério Público foi decretado. Ele absolveu muita gente. Muitas vezes, o MPF queria condenações por 10, 15 crimes e o juiz condenou por três ou quatro que conseguiu comprovar no processo. Embora possa haver relação de cordialidade por trabalharem há muito tempo, não vi nada que aponte que não houvesse imparcialidade do magistrado. Sempre foi imparcial. Se não fosse assim, nós teríamos anulado esses processos.
Sempre foi imparcial. Se não fosse assim, nós teríamos anulado esses processos.
LEANDRO PAULSEN
Sobre Moro na Lava-Jato
Nenhum indício que possa desmerecer alguma prova?
Não fiz uma perícia disso. O que sei sobre esse diálogos são coisas que ouvi e li na imprensa. O que me chamou atenção nestes diálogos é que em momento algum vimos qualquer tipo de conversa afastada do interesse público. Eram conversas sobre o processo, sobre a operação. Não há nenhum indício de qualquer ato de descumprimento dos seus deveres profissionais.
Depois do vazamento, mudou a relação do senhor com o Ministério Público? O senhor troca mensagens com os procuradores?
Não, não troco. E assim como conhecemos advogados e procuradores, eventualmente até se pode ter alguma amizade com alguém da área jurídica. Mas esses episódios, para mim, não mudaram nada. Sempre pautei minha atuação pela ética. Acho até que houve uma exploração demasiada desses aspectos. As pessoas se conhecem, são sérias e não têm receio quando se confia no próprio trabalho.
O fato de Moro ter saído do Judiciário e ter ido para o Ministério da Justiça enfraquece a Lava-Jato? O senhor preferia que ele tivesse ficado?
Elogio Sergio Moro porque é um profissional competente. Ele teve a coragem de levar adiante processos difíceis. Sofreu pressão enorme sozinho na vara federal. Isso não é fácil. A pessoa que se dispõe a cumprir a sua função com tal independência merece a nossa consideração. Quanto à saída, é uma questão pessoal. Ele saiu para ocupar uma função que tem relação direta com a realização da justiça.