Pivô de uma disputa motivada pelo presidente Jair Bolsonaro, o cientista Ricardo Galvão foi demitido da direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) após defender a veracidade e a precisão dos dados que apontam o aumento da área desmatada na Amazônia. Galvão, que estava na instituição desde 1970, é físico respeitado com dezenas de trabalhos publicados no país e no Exterior. Ao saber que o Inpe divulgou o avanço do desmatamento, Bolsonaro declarou que o presidente do instituto estava “a serviço de alguma ONG”.
No embate com o presidente, Galvão disse que o instituto era cientificamente sólido o suficiente para resistir aos ataques do governo:
— Ele (Bolsonaro) tem um comportamento como se estivesse em botequim. Ou seja, ele fez acusações indevidas a pessoas do mais alto nível da ciência brasileira, não estou dizendo só eu, mas muitas outras pessoas. Isso é uma piada de um garoto de 14 anos que não cabe a um presidente da República fazer.
Nesta entrevista, Galvão fala sobre sua demissão e sobre o monitoramento das florestas.
Como o senhor avalia tudo o que aconteceu?
Isso tudo foi criado por um desentendimento grande dentro do governo sobre o papel do Inpe nessa questão do monitoramento da Amazônia e até uma falta de comunicação entre ministérios, motivada no fundo por esse posicionamento adotado pelo novo governo, principalmente pelo ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente), de combater a questão do aquecimento global, colocar dúvidas sobre o controle do desmatamento da Amazônia. Isso acabou transmitindo um recado de que o monitoramento do desmatamento não era tão relevante no governo. Não acredito que isso seja realmente o que o governo pensa. Os discursos destas pessoas vão muito nessa direção, um ataque muito forte ao Inpe, de que os nossos dados seriam incorretos. Tudo contrário às evidências enormes que já existem sobre a importância do trabalho do Inpe no controle do desmatamento. Eles poderiam até levantar questões, que é normal na ciência, sobre a precisão dos nossos dados, se a interpretação estava correta, tudo isso seria bastante aceitável, como já foi no passado.
A qual episódio anterior o senhor se refere?
As pessoas se esquecem que, no governo Lula, em 2008, houve uma contestação enorme feita pelo governador Blairo Maggi sobre os dados do desmatamento no Mato Grosso. Dessa vez, infelizmente, o presidente atacou muito fortemente o Inpe e a mim porque, ao dizer que os dados eram mentirosos, ele na verdade estava acusando os cientistas do Inpe de crime de falsidade ideológica abertamente para a imprensa internacional. O presidente não teve a dimensão do instituto de que ele estava tratando.
O Inpe está vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, comandado por Marcos Pontes. Não faltou apoio dele?
Sem a menor dúvida. Desde janeiro, quando houve os primeiros ataques do ministro Ricardo Salles, publicamos nota técnica muito elegante explicando como o Inpe coletava os dados, nos colocando à disposição para ter um diálogo com o Ministério do Meio Ambiente. Não podemos esquecer de 2004 a 2012, quando houve redução substancial na taxa de desmatamento da Amazônia porque o Ministério do Meio Ambiente, comandado pela Marina Silva, usava os dados do nosso sistema para tomar ações imediatas de controle de desmatamento. No atual governo, em vez de fazer isso, (o Ministério do Meio Ambiente) começou a atacar os dados do Inpe.
O senhor fez alguma tentativa de aproximação?
Em março, tive uma reunião no ministério (da Ciência e Tecnologia), avisando que esse confronto com o Meio Ambiente seria muito ruim e que era necessário termos uma ação conjunta para abrir o diálogo. O Ministério do Meio Ambiente tinha cortado totalmente a comunicação com o Inpe, não solicitava mais informações. Mas o ministério não fez nada. Na verdade, meu chefe imediato foi até reprimido por ter levantado essa questão lá.
Seu chefe imediato era o ministro?
Não. Acho que o assunto não chegou ao ministro. Quando o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) disse, no final de junho, que os dados do Inpe eram manipulados, eu também não reagi na imprensa e mandei um ofício direto ao ministro Marcos Pontes, avisando que esse confronto não era bom para o país, que iria prejudicar a imagem do Brasil e que eles não tinham a dimensão do que isso representa internacionalmente e propondo que fossem abertos canais de diálogo. Não houve resposta. Nenhuma resposta.
De onde vem essa resistência aos dados científicos coletados pelo Inpe?
É difícil dizer. Essa pergunta tem uma resposta de acordo com a análise subjetiva de cada um. Aqueles que não são tão cultos, que não têm visão mais ampla sobre essa questão, criticam, querem o fim da Amazônia de uma forma muito grotesca e tosca para explorar. Então, eles criticam. E a maneira de atacar é atacar os dados do Inpe. É uma atitude de quem não tem preparo científico suficiente para entender a questão.
Como o senhor avalia esse cenário?
Olha, não sei o nível de seriedade a que chegou isso. Estamos agora identificando essa questão do desmatamento da Amazônia. Aliás, acabou se sair um relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) que mostra serem absolutamente essenciais as florestas tropicais e a Amazônia, pela questão do armazenamento de carbono. No IPCC, há brasileiros de renome internacional. Um deles, o professor Paulo Acácio, da USP, que trabalha com dados e poderia informar o governo.
Os brasileiros nunca foram consultados. Aliás, a vice-presidente do painel, Thelma Krug, é pesquisadora do Inpe. Então, em vez de ficar contestando pesquisa, deveriam consultar o Inpe imediatamente. Quando eles falam sobre exploração sustentável da Amazônia, não se pode esquecer que o próprio Ministério de Ciência e Tecnologia tem três institutos de reputação mundial que conhecem a Amazônia: o Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), o Museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará, e o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Com todo o conhecimento e os especialistas de grande renome que temos, ficam falando abobrinhas e besteiras sem consultar a base científica existente no próprio ministério.
Quais são os riscos de ignorar os dados do Inpe sobre desmatamento?
O risco vai ser muito grande para a reputação do governo. No final do ano, vamos comunicar os dados consolidados sobre o desmatamento da Amazônia desde agosto do ano passado até julho desse ano, e não há dúvidas de que vai mostrar aumento substancial no desmatamento. Acabamos de soltar um relatório sobre um aumento grande no desmatamento. Também estamos soltando dados sobre queimadas. Houve aumento enorme no foco de queimadas. São coisas que não há como esconder. A única resposta que o governo poderia dar e conferir credibilidade ao Brasil é ir lá e atuar realmente, tomar as medidas necessárias, como tomou a ministra Marina Silva quando o problema surgiu para ela.
Qual é o seu futuro?
Sou professor titular da Universidade de São Paulo. Estou já retornando na segunda-feira para a USP e para as minhas atividades no grupo de pesquisa.