Tema central nas discussões políticas sobre a necessidade do equilíbrio das contas, a reforma da Previdência vai ganhar fôlego nos próximos dias. A equipe econômica de Jair Bolsonaro prepara uma proposta de alteração nas regras de aposentadoria que deve ser apresentada em breve ao Congresso. O economista e consultor legislativo do Senado Pedro Fernando Nery tem se dedicado a desmistificar o assunto e suas possíveis repercussões. Ele reuniu todo o trabalho em um livro que acaba de ser lançado: Reforma da Previdência – Por que o Brasil não pode Esperar, que escreveu em parceria com o economista Paulo Tafner.
Para quem ainda não entendeu, o quão urgente é a reforma da Previdência?
Neste final de semana, o déficit da Previdência já passou de R$ 10 bilhões no ano. Quer dizer: só nessas duas primeiras semanas, já gastamos mais do que o orçamento de Ciência e Tecnologia. Isso dá um pouco da dimensão das despesas: é um gasto muito grande que cresce de maneira muito acelerada.
Qual é a reforma ideal para ajustar as conta?
Não existe reforma ideal. É importante que seja focada naquilo que afeta mais os mais ricos, tanto do lado da despesa, quanto do lado da receita. Em termos de despesa, estamos falando de uma reforma nas regras de cálculo da aposentadoria dos servidores públicos, da criação de idade mínima por tempo de contribuição no INSS e da revisão do cálculo das pensões por morte. E do lado da receita, estamos falando de combate a privilégios como os refinanciamentos para devedores, os chamados Refis, e as próprias renúncias fiscais, que são um tipo de isenção que algumas empresas têm direito e cujo retorno para a sociedade é questionável.
Como você avalia o que foi dito até agora pelo governo sobre a reforma?
A princípio, parecia haver dentro do próprio governo visões divergentes sobre o tema. Agora, parece haver um esforço para uniformizar a questão. Acho que o que aconteceu de mais importante nos últimos meses é a convergência para o uso da proposta que já está no Congresso, do ex-presidente Michel Temer. Esse é um fato um pouco surpreendente porque o próprio presidente Bolsonaro, como deputado, e o ministro-chefe da Casa Civil (Onyx Lorenzoni), também deputado, foram frontalmente contra essa proposta. Os dois chamaram ela de "porcaria", mas acho que houve um choque de realidade que está culminando na ideia de aproveitar a proposta de Temer e tentar alterar uma coisa ou outra.
Quando Temer apresentou a proposta, a oposição fez vingar a ideia de que as pessoas iriam trabalhar até morrer para se aposentar. Isso é um mito?
É um mito por dois motivos. O primeiro é que já existe no Brasil idade mínima para aposentadoria justamente em benefícios que são usados pelos mais pobres. Por um motivo muito simples: o trabalhador mais pobre não tem carteira assinada por um tempo, fica desempregado, como informal, e aí ele não acessa a aposentadoria por tempo de contribuição. Vamos pensar em uma empregada doméstica que trabalhou a vida toda, por 40 anos, e poucos patrões assinaram a carteira de trabalho. Ela não vai ter direito a essa aposentadoria e, por isso, vai usufruir de outros benefícios que têm a idade mínima. Já existe idade mínima hoje no Brasil. Quem se aposenta mais cedo sem idade mínima é quem teve muito tempo de contribuição, é quem tem acesso ao mercado de trabalho formal, e no Brasil isso não é a regra. Temos informalidade alta, passamos por períodos de crise com desemprego alto. A segunda questão é a expectativa de vida, que aparece muito nesse debate. O pessoal fala que no Piauí a expectativa de vida é de 70 anos, não dá para colocar 65 anos (como idade mínima). Além de já existir idade mínima no benefício usufruído pelos mais pobres, uma qualificação que precisa ser feita é que, para fins de Previdência, a gente tem que olhar expectativa de vida em idades mais altas. Como assim? A expectativa de vida ao nascer é muito influenciada por diversos tipos de óbito que acontecem antes da idade de aposentadoria e que são muito significativos no Brasil: mortalidade infantil, homicídio de jovens, trânsito. Todas essas mazelas nacionais derrubam a expectativa de vida ao nascer, mas não tem nada a ver com a expectativa de vida dos mais velhos. E quando a gente olha a expectativa de vida dos mais velhos, a gente vê que embora ainda exista diferença regional, ela é bem pequena. Em todos os Estados do Brasil, aos 65 anos, a expectativa de vida é de pelo menos 81 anos. Esse indicador tem crescido e por isso que a gente precisa de Previdência. Quando a gente fala em trabalhar até morrer, tem de fazer essas duas qualificações: já existe idade mínima hoje, a reforma é voltada para criar uma idade mínima para os trabalhadores mais ricos e, na verdade, a expectativa de sobrevida dos mais velhos já passa dos 80 anos. Inclusive, nos Estados mais pobres do Brasil as idades médias de aposentadoria são maiores que nos Estados mais ricos.
Qual seria o modelo ideal para idade mínima?
Convergência nas regras de aposentadoria que já existem no Brasil. Por que o trabalhador urbano tem de se aposentar muito mais cedo do que o rural? Por que o servidor público se aposenta muito antes da idade do BPC? Aproveitar as regras que já existem para os mais pobres e trazer elas para os mais ricos deve chegar próximo do que a gente pode chamar de ideal.
Um tema polêmico é a aposentadoria dos militares. Quais são as possíveis distorções que podem ser revistas?
No mundo todo, existe tratamento diferenciado para militares. O que é mais marcante no Brasil é a possibilidade de levar o salário integral mesmo em idades mais jovens. Nas Forças Armadas, existem idades máximas para cada patente. Muitos militares vão para a reserva de maneira obrigatória porque não conseguem progredir na carreira, e chegou a idade máxima para aquele posto. Esses militares, ao contrário do que ocorre em outros países, levam 100% do salário. Em outros países, o valor é proporcional. Então, o problema da Previdência dos militares não é o general, que ficou até mais tarde. É principalmente quem sai mais cedo. Metade dos militares se aposentou antes dos 49 anos, 90% antes dos 54 anos. É preciso rever a idade limite e também alterar essa fórmula de cálculo para que ela seja proporcional.
É possível igualar as regras de aposentadoria para homens e mulheres?
A principal preocupação nesse debate não deveria ser tanto a idade da mulher, mas o tempo de contribuição dela. No Brasil, a taxa de informalidade é maior entre mulheres, principalmente a mulher com filhos, que está mais sujeita a dupla ou tripla jornada, e que tem muita dificuldade de conseguir emprego com carteira assinada. A proposta de Armínio Fraga e Paulo Tafner concede mesma idade mínima para homem e mulher, mas permite que o tempo de contribuição da mulher seja menor. É possível prestigiar essa questão da dupla jornada. De fato, a mulher que é mãe está desempenhando um trabalho não remunerado, está fora do mercado formal e, por isso, contribui por menos tempo. O parâmetro a ser ajustado não é a idade, mas o tempo de contribuição, porque ela fica menos tempo com emprego formal.
Como fazer a regra de transição para quem já contribui?
É um tema difícil. A gente sabe que a proposta do presidente Temer fez uma transição longa, que duraria cerca de duas décadas, mas não foi muito bem comunicada e compreendida. A proposta de Fraga e Tafner faz uma transição mais rápida. Quanto mais longa for a transição, mais justo estamos sendo com o plano dos trabalhadores e com as suas famílias. Porém, quanto mais longa for a transição, menor o impacto no curto prazo. Se a transição for muito longa, a gente corre o risco de fazer uma reforma da Previdência que só vai ter impacto lá na frente. É um debate difícil para o governo, porque quanto mais alongar a transição, menos vai colher os frutos da reforma.
Quanto mais longa for a transição, mais justo estamos sendo com o plano dos trabalhadores e com as suas famílias. Porém, quanto mais longa for a transição, menor o impacto no curto prazo. Se a transição for muito longa, a gente corre o risco de fazer uma reforma da Previdência que só vai ter impacto lá na frente. É um debate difícil para o governo, porque quanto mais alongar a transição, menos vai colher os frutos da reforma.
Qual é o real impacto do auxílio-reclusão nas contas da Previdência?
O auxílio-reclusão é um benefício bastante particular, não existe em outros países. Faz pouco sentido porque o argumento de que é para proteger famílias vulneráveis não se sustenta muito porque é um benefício previdenciário, não é assistencial. Então, é para quem tem carteira assinada. Não é um benefício para o assaltante ou para a família do traficante. Acaba sendo um benefício para as famílias dos crimes mais ricos, digamos assim. Então, faz pouco sentido. Por outro lado, ele tem um impacto muito pequeno nas contas públicas, justamente porque é voltado só para quem tem carteira assinada. Dentro do gasto previdenciário do governo federal, representa 0,3%. Mexer no auxílio-reclusão é mais uma coisa simbólica, de narrativa, de prestar satisfação para a sociedade, de que está tentando combater todo tipo de gasto indevido do que algo substantivo que seja substituto da reforma da Previdência. Muita gente atribui esse benefício aos governos do PT, mas ele vem dos anos 1960 e foi preservado pela ditadura militar.
O sistema de capitalização da Previdência funcionou no Chile?
Houve muitos problemas no Chile. Quando se fala em capitalização, não se leva mais tanto em conta a experiência do Chile, que fez uma reforma muito radical e transformou a Previdência toda em um regime de capitalização. O que muitos países fazem hoje é adotar um sistema chamado de multipilar: o salário do trabalhador é dividido em pilares e para cada parte do salário corresponde um pilar. Uma parte fica no regime atual de repartição e uma parte vai para esse sistema de capitalização. O Chile já não é o modelo a ser seguido: embora tenha trazido muita prosperidade para o país, elevado a poupança nacional e melhorado a infraestrutura, a aposentadoria ficou muito aquém do esperado.
Existe algum receio em torno desse modelo?
Se ele for implantado apenas para uma parcela da renda dos trabalhadores que ganham mais, não existe problema. O problema é se você acaba completamente com a aposentadoria como existe hoje, acaba com o BPC, e transforma tudo em capitalização.