Há seis meses, a professora Carla Cristine Fernandes Guimarães tomou a decisão mais difícil dos seus 23 anos de magistério. Diretora da Escola Estadual Ildo Meneghetti, na Restinga, em Porto Alegre, Carla não resistiu à pressão. Pressão da violência, da falta de segurança, da ausência de respostas para os problemas que sufocam a escola pública. Carla abandonou a direção do colégio em que trabalhou por oito anos, pedindo transferência.
Num intervalo de 120 dias, a escola que tem 1.790 alunos e cem professores foi depredada ou saqueada 25 vezes. Certa vez, o turno da noite foi suspenso por falta de iluminação. O pai de um aluno doou cem lâmpadas, e as aulas foram retomadas. No dia seguinte, parte das luzes foi levada. No início do ano, com medo de perder mais um computador, a diretora o escondeu no banheiro para evitar que bandidos encontrassem o equipamento.
– Ir para a escola passou a ser um sofrimento – afirma.
Confira a entrevista com a professora:
O que foi determinante para a senhora deixar a direção da escola?
Quando ir para a escola passou a ser um sofrimento. Na esquina, antes de chegar, a sensação era de que o coração ia sair pela boca. Era uma angústia permanente sobre o estado que eu iria encontrar o prédio, sobre como estaria o material de trabalho das crianças, dos professores, o refeitório. As próprias fichas dos alunos foram destruídas. Quando arrombaram e depredaram a secretaria, não sabíamos de que forma poderíamos resgatar aqueles registros. Isso vai criando desconforto, depois medo, deixando uma sensação total de impotência. Decidi que não iria adoecer em decorrência disso tudo. As minhas forças se acabaram.
Qual a sensação ao chegar a esse ponto?
É uma sensação de derrota. Tu vais para vencer, para fazer daquela escola a melhor, mostrar que é possível. Aquilo que tu expuseste para a comunidade no processo de escolha da direção (Carla foi eleita diretora em 2016), os teus sonhos de transformar o ambiente escolar... Ver que aquilo não vai acontecer é devastador.
Decidi que não iria adoecer em decorrência disso tudo. As minhas forças se acabaram
Carla Cristine Fernandes Guimarães
Professora
O que mais pesou?
É a violência. E começar a ouvir como justificativa para tudo aquilo que "as coisas são assim mesmo, que a violência está em todo lugar". Aí o medo vai aumentado.
A senhora ouviu de quem?
Da Secretaria Estadual da Educação, das pessoas de um modo geral, na própria delegacia de polícia, quando fui registrar ocorrência e havia outros quatro casos de escolas arrombadas. Isso passou a ser normal.
Quanto tempo passou em delegacias desde que assumiu a direção?
Perdi as contas. Foram muitas horas. Tinha um processo todo com o qual eu já estava acostumada. Sempre que a escola era atacada, eu era orientada a tirar fotos de tudo, ir a uma delegacia, fazer a ocorrência e encaminhar para a secretaria. É um desgaste que tu não tens ideia. Toda vez que eu tirava fotos dos locais arrombados e dos estragos dava uma dor no coração. Teve uma semana em que o prédio da escola só não foi arrombado na segunda-feira.
Que resposta a senhora recebia das autoridades?
Todo mundo conhece a nossa realidade. A Brigada Militar faz rondas, passa na escola à noite, mas não há vigilância sempre.
Que tipo de ensino se passa nesse ambiente?
Péssimo. Os professores tentam de todas as formas seguir, mas o prejuízo é enorme. Certa vez me perguntaram se esses ataques poderiam ter sido cometidos por alunos. É claro que não. Eu via o desespero deles cada vez que acontecia um arrombamento.
Os professores chegaram a tomar alguma medida?
Sim. Quando estavam levando todos os computadores, o meu, o da secretaria, o da biblioteca, sobrou apenas o da pessoa que cuidava das finanças. Naquele computador, havia todos os dados sobre as contas do colégio. Pensamos num local que podia ser mais seguro, mas já haviam invadido todos os ambientes. Decidimos, então, escondê-lo num banheiro. E ali ele ficou uns 15 dias. Chegávamos de manhã, instalávamos o computador e o usávamos durante o dia. À noite, era desligado e escondido no banheiro novamente.
Faz quase seis meses que a senhora deixou a escola. Está melhor ou arrependida?
Não estou arrependida. Ganhei em qualidade de vida. Eu tinha atingido o meu limite.
Diante deste cenário que a senhora descreve, qual pode ser o futuro da escola pública?
Acredito que estamos passando por um momento muito grave, e que precisa acontecer uma ruptura drástica para poder melhorar a educação. Ouço isso do meu pai há muitos anos. Talvez essa geração não consiga ver isso acontecer na prática. Espero que a próxima veja. O que me mantém em pé é poder acreditar que, um dia, isso vai melhorar. Quando, lá atrás, optei pela pedagogia, larguei um emprego bom, que pagava bem, para ser professora. Mas, fico pensando que, se eu tivesse ficado em outra área, a situação não seria muito melhor. Não adianta: educar, ser professora é o que me realiza.