Todo mundo tem falhas. Não apenas defeitos – pedaços faltando, como num quebra-cabeças. Esses espaços vazios nos movem. Quanto mais conheço pessoas, mais me admiro com a maneira que cada um encontra para preencher os seus.
Pensei nisso ao explicar a uma aluna como um cientista escolhe o foco de um projeto de pesquisa. O conhecimento sobre um assunto é assim: muita coisa se sabe, mas há também buracos – coisas sobre as quais não temos ideia. Um cientista não perde tempo com o que já se sabe – é obrigação aprender rapidamente o que puder sobre o que já se conhece. E isso é essencial para entender onde estão as falhas – identificar o que não se sabe. É na fronteira entre o conhecido e o desconhecido que nos apaixonamos perdidamente e escolhemos aquilo ao que dedicaremos anos de nossas vidas.
Daí começamos a fazer perguntas, como já contei aqui, que começam com “como...”; formulamos hipóteses; e testes para os quais as respostas têm que ser sim ou não. Enquanto tentamos responder as perguntas, outros vão trabalhando, o conhecimento vai aumentando; aprendemos e seguimos. Onde estão os novos espaços vazios? Talvez os cientistas não sofram tanto com as falhas, porque sabem que elas podem motivar a avançar.
Pensei nisso quando falava, nestes dias, sobre dengue. Há décadas sabemos que existem quatro sorotipos de dengue. Não são mais variantes; são bem diferentes uma da outra, mas ainda todas são o mesmo vírus. Há anos sabemos que a infecção não cria imunidade protetora contra os quatro tipos e que, quando se contrai o vírus pela segunda vez, mas com um sorotipo diferente, a doença é mais violenta e pode ser fatal. Para contrair dengue você tem de estar em um lugar onde existe o vírus e o mosquito. Isso é praticamente todo o Brasil. No Rio Grande do Sul, temos menos do mosquito, mas o temos. E quando alguém é infectado com o vírus, podemos rastrear os contatos e identificar a origem dos surtos. Mas tudo isso é notícia velha. Onde estão as falhas? Como proteger de todas as variantes?
Uma boa vacina. Estamos nessa etapa. Existem vacinas inativadas, mas ainda não protegem contra os quatro sorotipos. Seguimos. A melhor vacina vai poupar dezenas de milhares de vidas todo ano só no Brasil. Enquanto isso, prevenção: saneamento, e rastrear contatos, conter o vírus, identificar susceptibilidades, buscar tratamentos.
O cientista é treinado para completar esses quebra-cabeças; a maioria das pessoas, não. É mais difícil completar os quebra-cabeças de cada um; os relacionamentos entre as pessoas são mais complicados do que os grandes problemas científicos.
E, quando vejo alguém usando seu tempo, seus dons, para espalhar mentiras, para prejudicar outros, sempre penso: uau, aqui estão suas falhas. Como devem doer para que se tente preenchê-las causando dor a outros. Talvez você precise negar a realidade porque a sua dói demais. Quem sabe, tente a ciência. Tem falhas, mas isso nunca foi nem será um problema.