Se você tem uma dúvida sobre imunologia, consulte um imunologista. Se você tem uma dúvida sobre imunidade de rebanho a vírus, consulte um imunologista especializado em vacinas e vírus. Embora isso pareça lógico, há quem hoje apregoe soluções para a pandemia travestidas de conhecimento imunológico sem, na verdade, possuir nenhum.
A medicina aplica o conhecimento desenvolvido por nós, que fazemos a pesquisa básica para entender o fenômeno. E, ao longo do tempo, as práticas clínicas são aperfeiçoadas avaliando os resultados em pacientes, revelando que aspectos de uma doença precisam de mais investigação, trazendo novos desafios para nós no laboratório. Foi assim com a imunologia do câncer, que revolucionou a oncologia. Mais de 50 anos de conversa entre ciência básica e prática clínica foram necessários. Só que agora nós não temos esse tempo – nunca tivemos, na verdade.
“Imunidade de rebanho” é o conceito criado para ajudar a calcular quantas pessoas numa população precisam de proteção imune a um agente infeccioso para que ele não atinja os indivíduos vulneráveis. Assim planejamos estudos e políticas de vacinação. O estudo da imunidade das populações leva em conta a taxa de transmissão do vírus, o Ro (para quantas pessoas um individuo contaminado transmite o vírus), que pode variar dependendo da população (mais densa, mais ou menos contato entre grupos). Leva em conta também a proporção de pessoas já imunes, a mortalidade em casos atribuídos à doença e a mortalidade em casos em que a infecção foi comprovada.
Todos esses números ainda estão sendo calculados para o Sars-Cov-2 – dependem de estudos populacionais amplos, como o da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e outros que são publicados diariamente em revistas científicas. Compilando todos os estudos já realizados, o Ro do vírus está entre 2,2 e 5,7. Essa variação reflete as dificuldades de estudá-lo durante uma pandemia histórica.
Um estudo da Universidade de Chicago publicado na revista Immunity no dia 19 de maio calcula que, usando 3 para o Ro, precisaríamos de 67% de pessoas imunes para atingir proteção na população. A mortalidade em infectados tem sido relatada entre 0,1 e 1,38%. Se usamos 0,6 para o índice de mortalidade, o número de mortes para atingir a imunidade de rebanho no mundo hoje, sem vacinação, é de 30 milhões de pessoas. Isso não inclui, por exemplo, a possibilidade de o vírus se modificar, como o da gripe, diferente a cada ano. Não sabemos também quantas pessoas já possuem algum tipo de imunidade – isso ajudaria muito. E não sabemos quanto tempo dura a imunidade dos que se recuperaram – se não durar, complica tudo.
Todos os imunologistas do mundo estão trabalhando nisso. Usar termos complexos para confundir as pessoas é uma tática covarde, especialmente se vem de quem nunca mexeu um dedo pela educação. Pior ainda é usar a pobreza para justificar ignorar a ciência, se vem de quem nunca investiu na segunda nem trabalhou para erradicar a primeira.