Joana D’Arc Felix de Souza aprendeu a ler aos quatro anos, esperando a mãe fazer faxina. A menina magra e quieta debruçada sobre o jornal chamou a atenção de uma das patroas, que achou que ela imitava alguém que lia, apenas para espantar-se ao ouvir a garotinha ler alto as palavras da manchete. Joana foi para a escola cedo; sempre trabalhando, concluiu o Ensino Médio e passou na Unicamp. Escolheu Química, interessada no trabalho do pai, que trabalhava em um curtume. Sua competência levou-a a um pós-doutorado em Harvard, de onde voltou para fazer pesquisas no Brasil, ganhou diversos prêmios de inovação, mas principalmente, trabalha com iniciação cientifica, treinando jovens em seu laboratório.
Joana D’Arc é uma das poucas cientistas negras do Brasil. Num país em que 52% das pessoas são negras, dos 100 mil bolsistas de graduação e pós-graduação em ciência, pouco mais de 5 mil são mulheres negras. As mulheres já são um percentual pequeno dos pesquisadores nas áreas de STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática, em inglês). Como mostra o trabalho de Marcia Barbosa, do Instituto de Física da UFRGS, “as mulheres ainda são consideradas desprovidas das habilidades tidas como necessárias para a produção de conhecimento científico”. Muitos ainda não acreditam que negros tenham inteligência, e o resultado é uma ciência pouco diversa, descolada da realidade de mais da metade da população.
Infelizmente, não é privilégio do Brasil. Em um link sobre 23 mulheres negras que influenciaram a ciência americana, reparei que muitas não tinham nem foto. Pesquisadoras como Katherine Johnson, matemática negra que calculou a trajetória das naves que colocaram seres humanos em órbita, levaram mais de meio século para ter seu trabalho reconhecido publicamente. A mulher negra, além de não ser considerada igual ao sexo oposto, enfrentou desde sempre a dupla jornada de trabalho, algo que para a maioria das brancas só começou mesmo no século 20. No Brasil, como no mundo, a maioria dos negros vive em condições econômicas precárias, sem acesso à educação e cultura. E, mesmo quando superam tudo isso, acabam ignorados e preteridos. Quanto talento desperdiçado e desconhecido.
Dos 100 mil bolsistas de graduação e pós-graduação em ciência, pouco mais de 5 mil são mulheres negras"
CRISTINA BONORINO
Imunologista
Na terça (20), celebrou-se o Dia da Consciência Negra no Brasil. Na quinta-feira (22), houve aqui nos EUA o Dia de Ação de Graças. Se você é branco e acha que que essas duas datas não se relacionam, lembre: quando você chega aqui com seu passaporte brasileiro, automaticamente perde seu status racial. Aqui, você é hispânico e latino, e, para os apoiadores de Trump, em parte culpado por todos os problemas dos americanos. Aqui, você é indesejado; e, mesmo que tenha dólares, considerado por muitos como segunda ou terceira classe. Em uma janta multirracial, com cientistas homens e mulheres do mundo inteiro, dei graças pelas leis do país. Garantindo que latinos, negros e estrangeiros tenham acesso a educação e empregos, elas são a última barreira entre nós e a barbárie.