Querida Dra. Ruth Nussenszweig:
Li recentemente que a Organização Mundial da Saúde aprovou o uso de uma vacina para a malária na África, ainda que com baixa capacidade protetora. Pensei no que a senhora, que dedicou sua vida a entender a doença, diria sobre isso. Desde que sua família veio da Áustria para o Brasil, fugindo do regime nazista, a senhora mostrava que seguiria a medicina, como seus país. Na Universidade de São Paulo (USP), conheceu o Vitor, com o qual faria estudos decisivos sobre diagnóstico e profilaxia da Doença de Chagas. Quando será que a senhora teve a ideia de purificar parasitas da saliva do mosquito para desenvolver uma vacina contra a malária? Seu trabalho foi reconhecido internacionalmente, e a senhora acabou sendo a primeira mulher a chefiar o Departamento de Parasitologia da New York University (NYU). Sem nunca descuidar dos três filhos, a senhora e o Vitor foram pioneiros em tantas coisas, na NYU e no mundo.
Falam que seu compromisso com o trabalho não conhecia limites. Quem pratica esse tipo de dedicação tem urgência. Como daquela vez em 1972 em que a senhora convenceu a Antoniana Kretlli a lhe trazer um macaquinho infectado com Plasmodium até os EUA, num avião da Varig. Imagino o furor nos aeroportos – e nos passageiros! Mas, já no dia da chegada, em um laboratório no East Side, numa Nova York coberta pela neve, duas jovens brasileiras conspiravam para erradicar a malária.
Nunca vou esquecer de vê-la falar, num congresso internacional sobre vacinas no Rio, há alguns anos. A senhora estava tão feliz de estar no Brasil que começou a palestra em português. Lembro do silencio respeitoso da audiência – ninguém se mexeu –, muito embora apenas os brasileiros presentes estivessem entendendo. Mas a importância do seu trabalho tinha língua própria. Logo a senhora se deu conta, e trocou naturalmente para o inglês; liderança não tem nacionalidade, e todos ali compreendiam isso.
A senhora nos deixou neste mês, aos 89 anos. Talvez tenha sido mesmo melhor para a sua família ter sido forçada a emigrar do Brasil para os EUA, ao ver a ditadura militar ceifar pensamentos. Na NYU, a senhora e o Vitor tiveram verba e apoio, conseguiram avançar muito mais no estudo da malária. Ali, foram mentores de vários cientistas brasileiros importantes, que depois de terminarem o treinamento com vocês, retornaram ao país quando houve a abertura política. Sem falar nos seus filhos, especialmente o Michel. Esse anda na lista de candidatos ao Nobel por muito tempo, e deve ganhar, pois é hoje quem tem a maior chance de encontrar uma cura para a aids. Talvez seja este mesmo o triste destino do Brasil: deixar derramar por entre os dedos todo o talento e a paixão que inspiram, apenas para vê-los florescer e colher louros em terras onde se acolhe a grandeza. Mas a inspiração que a senhora trouxe e trará, essa fica no nosso coração, para sempre.