Durante o sinistro reinado do coronavírus — que esperamos não ser tão longo que nos mate a todos —, não custa lembrar que ameaças como esta sempre acompanharam a vida do homem neste planeta. Deve ser mera coincidência, mas a primeira obra de nossa literatura, a Ilíada, começa exatamente descrevendo uma peste que se abate sobre o exército grego. Homero, como o leitor deve saber, preferiu não contar toda a guerra contra Troia, limitando-se a narrar os cinquenta e poucos dias que culminarão com a morte e os funerais de Heitor, o maior de todos os troianos.
No séc. VIII antes de Cristo nada ainda se conhecia sobre os mecanismos de infecção e contágio, e a epidemia era vista como castigo por alguma transgressão religiosa cometida por um ou vários membros da comunidade, que passava a ser impura, contaminada por esta culpa cósmica, chamada de miasma ("mancha ou mácula criminosa"), conceito para o qual não temos equivalente moderno. Essa ideia implícita de contaminação levou a medicina antiga, que desconhecia a existência de microrganismos, a usar depois o termo miasma para designar as emanações dos pântanos ou dos cadáveres em putrefação, durante muito tempo consideradas as responsáveis pelas doenças contagiosas.
No caso da Ilíada, a encrenca é com Apolo, deus das artes, mas também da peste e da doença. Ele vai punir os gregos por reterem, como prisioneira e concubina de Agamênon, a jovem Criseida, filha de um de seus sacerdotes. Já nas primeiras linhas do poema ouve-se, no acampamento grego, o som da corda do temível arco do deus, abatendo homens e animais com a peste mortal. Morre-se sem saber por quê — e a morte vem "calada, como costuma vir numa seta" (frase de autor desconhecido, tantas vezes citada por Borges). Uma vez devolvida a moça a seu pai, o castigo cessa e os guerreiros exultam, porque agora podem retomar o seu morticínio habitual...
Não sei se meus amigos médicos sabem, mas eles estão representados na Ilíada — e muito bem — por Macaon, que, juntamente com seu irmão Podalírio, juntou-se à armada grega no comando de trinta navios. Era um médico de primeira linha: além de ser filho de Asclépio, deus da Medicina (o mesmo Esculápio dos romanos), tinha sido iniciado por Quíron, o lendário centauro-pedagogo, no segredo de todas as plantas curativas que a natureza oferece. Pois numa investida feroz contra os troianos, quando Páris transpassa o ombro de Macaon com uma flecha, os gregos murcham, desnorteados diante da possibilidade de perdê-lo. Numa rápida meia-volta, eles o colocam num carro e retornam a galope em direção ao acampamento para tratar o ferido. Todos, inclusive Aquiles, ficam extremamente preocupados, porque acreditavam (as palavras são de Homero) que "alguém que sabe curar como ele vale por um regimento inteiro". Eu também acho.