Entre as razões que levam alguém a escrever para esta coluna — algumas não muito amistosas, é verdade —, a predominante é a inconformidade que o leitor sente, às vezes, com o emprego de uma palavra ou expressão. Neste particular, a maioria das reclamações brota da TV e dos jornais.
Nada de mais. É natural que assim seja: ali os textos saem da mão para a boca, sem aquele tempo indispensável para revisar e repensar cada palavra escolhida. Se textos como este que você está lendo ficam entre 600 e 800 palavras, um jornal tabloide com 50 páginas deve ter (como dizia a Emília do Monteiro Lobato, vou calcular na batata do olhômetro) entre 60 e 80 mil. Imagino o que será redigir um texto equivalente a cem colunas minhas, seis dias por semana. É quase meio milhão de palavras, escolhidas no calor da hora, muitas vezes no fechamento da edição, ao som das doze badaladas. Os corretores automáticos limpam a ortografia, mas nada podem fazer quanto a problemas de significado, de propriedade ou de precisão.
Friso, para quem não me conhece, que não estou aqui absolvendo ninguém; erros e descuidos são condenáveis, e não tem coré-coré — apenas registro que eles, como as baratas, sempre vão estar por aí. Numa charla com Celso Luft no bar da antiga Faculdade de Filosofia, ouvi o mestre dizer que não existe livro algum que não tenha um punhado de equívocos - sem excluir os próprios dicionários.
Explico isso para consolar um leitor que assina com o pseudônimo de Mi General. Ele é gaúcho mas está em Curitiba, em visita aos sogros: "Professor, me dei mal. Trouxe um jornal ZH para ler na viagem e minha sogra, que além de tudo é professora aposentada, mal passou o olho em algumas páginas e já torceu o nariz com aquele ar enjoado de quem não gostou, mostrando com o dedo uma manchete que dizia "Aderência a tratamento é fundamental". "Você viu que erro absurdo? Olhe só!", ela comentou, e me deixou com cara de banana, sem saber o que dizer, porque para mim estava tudo certo. Acho que ela notou, porque aí me soltou uma baita indireta: "Um jornal sério não pode empregar gente incompetente assim. Todo o mundo sabe que o certo aqui é adesão". Acho que sobrou para a ZH e para mim de tabela, não é? Resolvi desconversar e fui para o quarto olhar na internet. Vi que um dicionário dá os dois como sinônimos, mas ela falou com tanta certeza que achei muito pouco cartucho para voltar lá e discordar.
Aprovo o teu recuo corajoso, Mi General. Ela está com a razão, é verdade - mas se dividirmos a razão em dez partes, como uma melancia, a professora ficou com sete delas. Com isso eu quero dizer que a questão é discutível, mas a esmagadora maioria (olha aí, de novo!), na qual me incluo, dá significados diferentes a aderência e a adesão. Os dois vocábulos são irmãos, nascidos do verbo aderir, mas nasceram do acréscimo de sufixos diferentes. Formam um par do tipo aparição e aparecimento, oficial e oficioso e tantos outros, sobre os quais prometo em breve escrever.
Usando a fauna como metáfora, esses brotinhos vão crescendo espontaneamente no caule do radical: uns vão sobreviver e medrar, outros vão morrer ressequidos. Do verbo lavar, por exemplo, brotaram (já no dicionário) lavação, lavagem, lavadura e lavamento. O futuro dirá o que vai ser de cada um deles. Quando sobrevivem dois com igual pujança, a mãe língua trata de dividir os territórios e as competências. Embora tratem ambos de vender, vendável é tudo aquilo que se comercializa com facilidade: o pintor esqueceu um pouco os seus sonhos e tratou de fazer telas mais vendáveis. Já vendível é aquilo que pode ser vendido: a área ocupada pelo Parque Farroupilha, por exemplo, é extremamente vendável, mas felizmente invendível.
É claro que nem sempre este corte tem bordas bem nítidas, Mi General. Alguns desses pares ameaçam fundir os significados. O verbo aderir já traz no seu âmago essa dualidade: significa colar, de um lado, ou abraçar uma ideia ou uma causa, do outro. Na repartição dos pães, aderência ficou com o primeiro e adesão com o segundo: cola de rápida aderência, mas adesão ao tratamento, ao partido político (que conquista adesões). Os dicionários, contudo, limitam-se a registrar os significados, mas não a estabelecer distinções - e por isso tanto tu, quanto o autor da manchete da ZH, foram ao dicionário e encontraram aderência com o mesmo sentido de adesão. E existe um dicionário que fuja desse círculo e traga a diferença entre os sinônimos? Bem, ele existe. Falarei dele em breve.