Todos aqueles que são mais velhos do que jovens – como este que vos escreve – já deveriam ter se apercebido de que a memória não é sempre um banco confiável, no qual depositamos todas as nossas lembranças para sacar quando quisermos. Na verdade, ficaria melhor compará-la a um queijo – mais precisamente a um Gruyère, cheio de buracos, por onde podem fugir as informações que tínhamos entesourado ou de onde podem brotar falsas recordações.
Quando nossas lembranças parecem não concordar com as lembranças que os outros têm sobre o mesmo tema, é hora de conversar. Hoje pela manhã (quarta-feira), na minha leitura habitual do Almanaque Gaúcho, do Ricardo Chaves, vi o registro sempre oportuno da campanha “Nenhuma Criança sem Escola”, que foi indiscutivelmente um dos marcos do governo de Brizola – e ali, para minha surpresa, vi que ele chama de brizoletas as tradicionais escolinhas de madeira do projeto (meus sete anos do ginásio e do curso clássico do Colégio de Aplicação foram passados numa delas, entre a Faculdade de Arquitetura e a Rádio da Universidade da UFRGS).
“Errou a Zero Hora”, pensei. No banco oficial da minha memória, estava depositada a forma brizolândia, clara, límpida, indiscutível – criada na fôrma da Disneylândia, da Cinelândia ou, para os cinquentões, da Vasconcelândia (quem lembra do José Vasconcelos?). Não que eu desconfiasse da precisão do Ricardo Chaves – eu simplesmente confiava mais na minha própria. A prudência, no entanto, me fez lembrar do queijo Gruyère e resolvi conferir no Google, que acumula a memória escrita da raça: para total espanto meu, todas as ocorrências, inclusive de sérios trabalhos acadêmicos, chamam as escolas de brizoletas! Tenho certeza (a esta altura, tinha) de que as escolas eram brizolândias; as brizoletas eram as letras do Tesouro do Estado emitidas pelo governador em 1959 para investimentos oficiais e pagamento de dívidas e de salários atrasados.
Minha convicção era reforçada pelo fato de que brizoletas era uma denominação pejorativa criada pela oposição a Brizola, certamente inspirada pelas quase contemporâneas filipetas, centro de um (mais um) escândalo financeiro. Hoje filipeta é o nome inofensivo desses pequenos volantes ou folhetos utilizado na divulgação de peças de teatro e eventos culturais; em 1952, no entanto, eram as notas promissórias sem lastro com que o mega vigarista Luís Filipe de Albuquerque lesou milhares de investidores. Não me parece provável que a população gaúcha, dada a intenção pejorativa de brizoleta, presente no próprio ato de criação do vocábulo, escolhesse espontaneamente o mesmo termo para denominar as escolas de um projeto que ganhou total aprovação.
Criava-se, aliás, um molde linguístico para designar todo o tipo de moeda podre. Nos anos 70, no governo Geisel, durante a crise do petróleo, Mário Henrique Simonsen, Ministro da Fazenda, pensou em recorrer a cupons de racionamento de combustível – ideia que nem chegou a nascer, condenada pela opinião pública, que batizou de simonetas o tal papelucho. Pouco depois, a Polônia, que devia mais de 6 bilhões de dólares ao Brasil, ofereceu em pagamento títulos da dívida pública, imediatamente batizados de polonetas pela imprensa nacional. Em 1983, o jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, numa nota intitulada “Da filipeta à poloneta”, alertava para a possibilidade da Petrobras recorrer a papeis para pagar o petróleo importado – as petroletas.
Para complicar ainda mais o enredo, com a ida de Brizola para o Rio, criou-se na Cinelândia a Brizolândia, um ponto de reunião de seus apoiadores, iniciativa imitada em outros estados. Pode ser que tenha sido esse o nó de onde brotou a confusão. Não sei. Apesar da preferência unânime por brizoleta, ainda não estou convencido. Eu sou dos Guedes, morro seco mas não me entrego: conclamo (eita, verbão!) meu amigo Sérgio da Costa Franco a se manifestar sobre o assunto: a opinião dele será sagrada para mim. Só assim poderei sossegar.