A pergunta vem de Luan R., publicitário de Florianópolis: “A dúvida surgiu quando eu e minha namorada estávamos revendo aquele vídeo em que Michael Jackson, com cara de defunto, dança Thriller junto com um bando de mortos-vivos: pelo estado da roupa e pelo corpo apodrecido, eles parecem ter ficado um bom tempo enterrados – como aqueles da série de TV dos Walking Dead –, mas já estão “passados” demais para chamá-los de cadáveres. Não dá para dizer que é uma dança de cadáveres, não é? A gente usa zumbi para simplificar, mas não existe um nome científico para esses corpos em decomposição que se mexem como se estivessem vivos?”.
Para adiantar o desfecho, Luan, já vou respondendo que não, não temos palavra alguma para isso. Teu sentimento está correto: cadáver não serve para designar aqueles corpos já decompostos que saracoteiam ao ritmo contagiante do Michael Jackson. A palavra cadáver vem do Latim cadaver, “corpo de um homem morto”; os filólogos antigos já o relacionavam ao verbo cadere, “tombar, cair para não mais levantar”, da mesma família que nos deu queda, decadência, caduco (nas árvores caducas, as folhas caem no outono), entre muitos outros. Já em Roma este vocábulo, por sua crueza, era substituído por corpus, “corpo”.
Esse nítido mal-estar que o termo provoca faz com que até hoje ele seja reservado principalmente ao contexto legal ou policial, enquanto o uso comum prefere corpo, mais humanizado. Não por acaso, Simone de Beauvoir, em Une mort très douce, referindo-se à mãe morta, exprime seu estranhamento ao ver “aquele cadáver deitado na cama, no lugar de mamãe”...
No passado, alguns autores explicavam sua origem por uma ingênua teoria que, mesmo sendo falsíssima, não deixa de ser significativa: no Latim, cadaver seria uma inscrição presente nos sepulcros dos primitivos cristãos, formada pelas sílabas iniciais de “ca(ro) da(ta) ver(mibus)”, literalmente “carne dada aos vermes”. Nos arraiais onde vivem os etimologistas populares, ainda hoje são frequentes essas tentativas amadoras de explicar a origem de um vocábulo pela união das letras ou sílabas iniciais; infelizmente para eles, só no séc. 20 começaram a surgir vocábulos desse tipo, como a famigerada Gestapo (Geheime Staats-Polizei – “polícia secreta do Estado”) e o laser (light amplification by stimulated emission of radiation – “amplificação de luz por emissão estimulada de radiação”).
Por razões óbvias, tudo o que cerca a morte – inclusive a linguagem – está envolto numa bruma indevassável. Acertaste em chamar os dançarinos do Thriller de mortos-vivos, um oxímoro criado para designar aqueles que ficaram no meio do caminho – deixaram de ser cadáver, mas ainda estão longe de chegar a esqueleto. Talvez te interesse saber que lá pelo séc. 15, muita gente endinheirada encomendou uma estátua de seu cadáver em adiantado estado de decomposição. Num sinistro exercício de imaginação, essas assustadoras esculturas eram chamadas pelo nome francês de transi (“o que deixou de ser”). Nelas a pessoa era retratada em semidecomposição, muitas vezes já sem os olhos, sem nariz, com vermes pululando por todo o corpo, numa horrível, mas didática, antevisão de nosso fim inexorável.
Bossuet, em seu Sermão sobre a Morte, pronunciado diante de Luís XIV, em 1662, já tinha entendido: “Não ficará sobre a terra vestígio algum do que fomos: a carne mudará de natureza, o corpo passará a ter outro nome, e nem mesmo será chamado por muito tempo de cadáver; ele vai se tornar um não sei lá o quê, algo que não tem nome em língua alguma, porque nele tudo morrerá, mesmo aqueles termos fúnebres que se usavam para designar seus infelizes despojos”. Disse tudo.