Já mencionei aqui, em outras ocasiões, o prazer que tenho em viajar pelo dicionário – às vezes ao acaso, como um simples flâneur, outras vezes com roteiro determinado por algum interesse específico. Pois andei, na semana passada, pelo Espírito Santo, onde fui apresentar uma sessão de storytelling (é assim mesmo que chamam?) sobre nada mais, nada menos que a Odisseia, quando então pude constatar, com prazer, que Homero continua sendo mais atual que os jornais do dia.
Terminado o evento, meus anfitriões me levaram para saborear uma inesquecível moqueca capixaba – segundo eles, a legítima, sem dendê ou leite de coco –, acompanhada de uma surpreendente (para mim) moqueca de banana-da-terra! Fiquei tão entusiasmado com a combinação que, ao voltar para Porto Alegre, decidi reeditá-la ao vivo, já que o pessoal aqui em casa já não aguentava ouvir minha descrição do prato. Reunidos os ingredientes, surgiu o problema de encontrar a tal banana, incomum por estas plagas. Na feirinha orgânica do Bom Fim, no sábado, finalmente encontrei uma espécie parecida, própria para cozinhar, mas sem o porte avantajado da fruta espírito-santense. Bem que a boa alma que me atendeu avisou: “Não estranhe a cica dela, que é assim mesmo”. Na hora, achei graça do cacófato e não dei bola para o resto. Só depois de pronta é que eu entendi a observação: a tal banana ficou intragável, deixando a língua grossa e os dentes botos.
Findo o almoço, lá me fui para o dicionário. A palavra cica veio do tupi e designa aquela adstringência “presente nas frutas ainda verdes mas também em maduras, como a banana-maçã ou o caju”. Era isso; eu tinha sido avisado. Não pude deixar de reparar na inadequação de dar este nome à antiga Companhia Industrial de Conservas Alimentícias – a Cica, lembram? A que bons produtos indica... (inadequação semelhante à escolha do símbolo adotado por nossa saudosa Varig – Ícaro, o jovem que depois de voar por algum tempo perdeu as asas e precipitou-se no oceano. Convenhamos, não é um bom mito para inspirar uma companhia aérea).
Esta então era a cica. Alguma coisa me fez lembrar do episódio de Monteiro Lobato, em que Pedrinho, na Grécia, sobe numa oliveira para colher azeitonas. Sem saber que elas só podem ser comidas depois de curtidas, põe uma na boca, para cuspi-la em seguida. “Lembra certas frutinhas do mato que ninguém come, de tão amargas ou itês”, conclui. Lobato não usou cica, mas itê. No dicionário, “ité ou itê – verdolengo, não amadurecido; diz-se geralmente da banana ainda verde ou de outra fruta que esteja com cica”. Bingo!
Como estava com o dicionário aberto, fui ver de onde tinha vindo a palavra moqueca; ao contrário do que eu pensava, não proveio de língua indígena, mas do quimbundo mukeka, “caldeirada de peixe”. Talvez meus prezados leitores estranhassem, no verbete, a própria definição: “guisado de peixe, frutos do mar, carne ou ovos, feito com leite de coco, dendê e bastante tempero”. Para nós, gaúchos, guisado é um prato com carne moída (o que o resto do país chama de picadinho); na tradição, contudo, guisado é um prato que se prepara refogado ou ensopado: “... um cordeiro frito em manteiga sobre arroz muito bem guisado e com muita especiaria” (Antonio Tenreiro, 1529); “Nunca juntou ao arroz mais que alguma fruta ou ervas guisadas ao modo da terra” (Lucena, 1600). Pronto; dicionário fechado, fim desta viagem.
E por falar na Odisseia, que é a viagem das viagens, lembro que estou formando um novo grupo – esta será a sexta edição – para visitar, em fevereiro de 2019, a Grécia da mitologia e da literatura: Atenas, Micenas, Corinto, Argos, Náuplio, Olímpia e Delfos. Ainda há vagas.