Que os geólogos e os arqueólogos ouvem o que as pedras têm a dizer, ninguém duvida; afinal, a pedra é o livro-texto de sua profissão. Para os que vivem na República das Letras, no entanto, as pedras são absolutamente mudas. Posso passar uma eternidade diante de uma pedra sem nada dela extrair, salvo a certeza de que breve é a minha vida, comparada com a dela. Já as palavras sobre as pedras, bem, isso é nosso ramo, e escolhi três exemplos para mostrar como uma escuta atenta pode trazer à tona relações que o tempo havia soterrado.
O primeiro é o escrúpulo. No Latim, scrupus designava a pedra pontuda, cheia de arestas afiadas; seu diminutivo, scrupulum (pedrinha, seixo) era a menor unidade de medida existente, valendo a 24ª parte de uma onça, o que corresponde a um pouco mais de 1g. Como era usada principalmente para pesar metais preciosos como o ouro e a prata, o sentido de precisão e meticulosidade aderiu ao termo até hoje: “O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas cabeças pertencentes ao patrão das poucas, um quarto, que lhe couberam por sorte” (Euclides da Cunha – e, para os sabidinhos de plantão, com um belo exemplo do emprego de “grande maioria”).
Ora, também chamavam de scrupulum aquela pedrinha incômoda, conhecida e odiada por todos, que de um jeito ou de outro termina entrando no sapato para nos encher de aflição. Numa bela metáfora que Cícero tornou famosa, o termo passou a designar também o freio que a consciência nos impõe, ao não nos deixar esquecer os princípios morais que devem reger nossos atos: “Escrúpulos de consciência me fazem confessar a verdade, e vem a ser que eu, deste volume, não li mais do que uma dúzia de páginas” (Machado). Essa ideia da consciência como um estorvo parece também estar por trás da personagem do Grilo Falante, na história do Pinóquio.
Depois vem o cálculo. No Latim, calculus quer dizer literalmente “pedrinha”. É o diminutivo de calx (“pedra calcária”), a mesma raiz de onde proveio o nosso cálcio. Como eram usadas pedrinhas para auxiliar a contagem, para votar ou para computar os pontos de vários tipos de jogos, o termo cálculo adquiriu o sentido atual de “medição, cômputo, avaliação”. Como a discriminação não nasceu hoje, os peritos em contagem eram denominados de calculones, se fossem escravos ou libertos, e de calculatores, se pertencessem à elite... Uma lembrança viva do significado primitivo desta palavra pode ser encontrada no vocabulário médico, onde as pedras que se formam no corpo do homem ou dos animais ainda são chamadas de cálculos – e Plutarco nos conta que Demóstenes, o famosíssimo orador, combatia a má dicção que lhe adveio com a velhice ensaiando seus discursos com cálculos dentro da boca.
Por último, vem o lápis. Em Roma, a pedra podia ser chamada tanto de lapis, lapidis quanto de petra, forma herdada do Grego, que se tornou a preferida de todas as línguas românicas (Port. pedra, Esp. piedra, Fr. pierre, It. pietra). Nós vamos encontrar aquele radical em várias palavras conhecidas: temos lápis-lazúli, “a pedra azul” (durante muito tempo eu disse “lázuli”, como proparoxítona; como o acento, no entanto, não deixa dúvida sobre qual é a prosódia recomendada, acabei trocando – mas não vejo mais na palavra o encanto que eu sentia por ela). Temos também a lapidação, que tem um lado bom e belo (“facetar pedras preciosas para realçar seu brilho”) e um lado terrível (“morte por apedrejamento” – pena que, por absurdo que pareça, ainda é imposta nos países mais atrasados da Terra, no século que até hoje mais se preocupou com os direitos humanos...). Ah, e temos também a lápide (em Inglês, tumbstone – “pedra do túmulo”), onde são gravadas as frases lapidares (que são, devido à solenidade do momento, geralmente nítidas e precisas). A minha já está pronta há muito tempo: “Lutou contra a ignorância, mas foi vencido”. Esta é a história da minha vida.