A edição de agosto da revista Quatro Cinco Um trouxe uma pequena preciosidade para os fãs de Clarice Lispector: a transcrição da longa entrevista que ela concedeu ao Museu da Imagem e do Som (MIS) em outubro de 1976. Mas melhor que ler é escutar. O áudio da conversa, conduzida pelos escritores Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna, foi restaurado há pouco e pode ser ouvido na íntegra em dois episódios do podcast 451 MHz – no site da revista e nas principais plataformas de streaming. (O mesmo material foi publicado, em fevereiro, na revista New Yorker.)
Benjamin Moser, biógrafo de Clarice, acredita que a imagem da escritora ficou demasiadamente associada a outra entrevista, concedida poucos meses depois, quando ela já estava doente. No depoimento à TV Cultura, disponível no YouTube, Clarice parece abatida e distante, como se já não fizesse parte deste mundo (“Estou falando de meu túmulo”, chega a dizer).
Na conversa com os amigos Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna, ao contrário, está relaxada e de bom humor – mais parecida com ela mesma, segundo pessoas próximas. Bebe Coca-Cola, fila cigarro, reclama da falta de dinheiro, faz troça do congresso de bruxaria que a levou à Colômbia em 1975 (e lhe rendeu a fama de diva esotérica).
O leitor da biografia escrita por Benjamin Moser talvez não se surpreenda com nada do que ela conta sobre suas origens ou processo criativo. O grande mérito da entrevista é deixar o ouvinte com a sensação de que está sentado ao lado de Clarice, testemunhando uma conversa franca e desarmada entre amigos. À vontade com seus interlocutores, provocada a lembrar episódios da infância, enumerar influências e revelar como e por que escreve, repete histórias que, àquela altura, já contou milhões de vezes. Que começou a fabular antes mesmo de aprender a escrever, que suas primeiras leituras iam de Dostoiévski à Biblioteca das Moças, que seus livros nasciam sem muito planejamento ou método.
Em alguns momentos, a escritora parece genuinamente intrigada com aquilo que nem ela – nem os leitores – consegue decifrar em seus contos e romances. “Eu não escrevo como catarse, para desabafar. Para isso servem os amigos. Eu quero a coisa em si”, diz a certa altura, localizando o coração selvagem da própria obra naquilo que, em essência, não se explica.
O que para ela era um mistério talvez seja mais simples do que parece: nem tudo que é avesso à compreensão imediata é bom, mas tudo que é bom tem algo que nos escapa, uma lacuna a ser preenchida – ou não. A coisa em si.