Aos 90 anos, lúcida, trabalhando, cercada de carinho e a ponto de receber um prêmio pelo conjunto da obra no Festival de Gramado, a atriz Léa Garcia teve o tipo de morte que todos consideram uma bênção. Ainda assim, a circunstância de ter sofrido um infarto poucas horas antes de receber o Troféu Oscarito nos deixa com a sensação de que a justa homenagem chegou um pouco tarde demais.
Poucas atrizes brasileiras tiveram uma trajetória tão longa e bem-sucedida. Léa estava no elenco da primeira montagem do musical Orfeu da Conceição (1956) e de sua oscarizada adaptação para o cinema, Orfeu Negro (1959), que lhe rendeu uma indicação ao prêmio de melhor atriz em Cannes. Na televisão, além da inesquecível vilã Rosa de Escrava Isaura (1976), interpretou incontáveis empregadas domésticas, secretárias, governantas. Dos três trabalhos que lhe renderam mais prêmios e reconhecimento, dois se passam em uma favela e o terceiro no período da escravidão.
Pouco conhecido do grande público, o filme Compasso de Espera (1969) não tem escravos nem favela nem domésticas – mas tem Léa Garcia. Se você nunca ouviu falar, bem-vindo ao clube. Também não conhecia até a semana passada. Em Porto Alegre, o filme ganhou uma exibição especial, em junho, na sempre antenada Cinemateca Capitólio. Quem perdeu ainda pode assistir no YouTube. Vale a pena.
Com um elenco cheio de nomes conhecidos (Renée de Vielmond, Stênio Garcia, Antônio Pitanga) e uma pegada godardiana na direção de Antunes Filho, o filme é uma pequena joia esquecida da cinematografia nacional. Zózimo Bulbul, igualmente pouco lembrado, interpreta o protagonista Jorge, um homem negro de classe média que escreve poesia, trabalha em uma agência de publicidade e namora uma mulher branca.
Se parasse por aí, o filme já seria excepcional: um protagonista negro, de classe média, vivendo sua vida. Mas Compasso de Espera vai além, trazendo para o contexto brasileiro as discussões sobre racismo que estavam incendiando os Estados Unidos naquele momento. Em plena ditadura, quando muita gente ainda gostava de acreditar que racismo era problema de gringo, o filme desacomoda o espectador ao mostrar episódios de preconceito nas versões velado, explícito e violento – bem ao gosto nacional. Poucas vezes o cinema brasileiro foi tão fundo na abordagem do tema.
Galã, cineasta, ator de filmes como Cinco Vezes Favela e Ganga Zumba, primeiro negro a ter um papel de destaque em uma novela e ícone da cultura afro-brasileira, Zózimo Bulbul morreu em 2013, aos 75 anos. Também não deu tempo para homenageá-lo em Gramado. Outro grande nome da cultura negra brasileira que morreu em compasso de espera.