Tolstói não é russo. Ou talvez seja. Não sei que língua ele fala. O que sei é que passa algumas horas por dia, todos os dias, sentado no banco da praça mais movimentada de Roosevelt Island – haja guerra ou haja paz.
Tolstói está sempre lendo alguma coisa, as costas formando um ponto de interrogação quase perfeito sobre o livro, como se essa manobra radical da cabeça em direção ao plexo solar tivesse sido aperfeiçoada ao longo de muitos anos de rígida disciplina – uma Nadia Comaneci da cifose. Capote gasto nos dias frios, mangas arregaçadas quando o calor aperta, o figurino todo preto varia o mínimo possível. A barba encosta nos botões da camisa, e os cabelos são um vasto tumulto prateado. Lamento que não lhe ocorra adotar um chapéu no inverno ou uma bata branca nos dias mais quentes. Ajudaria a compor o personagem e justificaria o apelido. Se fizesse anotações para compor o grande romance realista sobre o nosso tempo, melhor ainda. Mas meu Tolstói não escreve ou pontifica. Pelo menos em público.
Às vezes, o homem de barba branca deixa o livro de lado e concentra-se no que acontece em volta. Para quem gosta de prestar atenção no comportamento de estranhos, a praça é um cinema com sessões ininterruptas. A qualquer hora do dia, pode-se escolher entre o romance, o drama, a comédia familiar, o filme mudo. No verão, pais com crianças pequenas dominam o território, mas todos os tipos humanos estão representados nesse pequeno bioma nova-iorquino: gente moça, gente velha, gente que consegue (ou precisa) dormir na rua, leitores de celular, comedores de sanduíches. Tolstói acumula as funções de observador e observado. Não é do tipo que assusta crianças, mas consegue se destacar em uma cidade em que todas as estranhezas parecem mapeadas e nada chama atenção por mais de 30 segundos.
No inverno, Tolstói não se intimida com a neve. Talvez porque tenha assistido a nevascas épicas em cantos mais gelados do mundo (na Rússia, claro, gosto de imaginar). A praça se esvazia, mas ele não abandona seu posto. Nos primeiros dias de abril, quando as cerejeiras anunciam a chegada da primavera e o chão se cobre de pétalas, tudo volta a ficar colorido, menos ele.
O Tolstói da praça nem desconfia que quando passo por ele penso em guerras napoleônicas, na doença terrível que matou Ivan Ilitch, nos sofrimentos de Anna Karenina e na arte quase perdida de observar estranhos sentados em bancos de praça – no caso dele, lendo e observando estranhos, sem nunca observar o celular.