A relação entre os muito ricos e seus serviçais foi retratada no cinema por dois diretores que nunca precisaram bater ponto ou pegar um ônibus lotado.
Luchino Visconti (1906 - 1976), filho de um conde e da herdeira de uma grande empresa farmacêutica, começou a carreira dirigindo filmes sobre trabalhadores (A Terra Treme, Rocco e seus Irmãos), mas é mais lembrado hoje por produções suntuosas (O Leopardo, Morte em Veneza) em que o foco são a aristocracia e a grande burguesia. Em O Trabalho, episódio em tom de sátira do filme Boccaccio 70 (1962), os protagonistas são jovens, ricos, belos – e seriamente desocupados. Pupe (Romy Schneider) decide se vingar das traições do marido, Conde Ottavio (Tomas Milian), tomando uma atitude radical: procurar um emprego. Paparicado por um séquito de criados, o casal discute se vale ou não a pena trabalhar. A condessa parece ficar surpresa ao descobrir que seus empregados trabalham porque precisam ganhar a vida – e não pelo simples prazer de servi-la.
João Moreira Salles, herdeiro de um banco, retratou um dos empregados da família em Santiago (2006) – um dos melhores documentários brasileiros dos últimos 20 anos (na minha opinião, claro, mas não só). Santiago Merlo já está aposentado e morando no apartamento que ganhou dos patrões quando concede a entrevista. A ideia inicial do cineasta era mergulhar em suas próprias memórias de infância, além de revelar as excentricidades do ex-mordomo, mas o projeto acabou sendo abandonado. Anos mais tarde, Moreira Salles retorna ao material e percebe sutilezas da conversa que havia deixado escapar. O filme não é mais sobre Santiago apenas, mas sobre os vestígios de uma relação de poder entre patrão e empregado.
A invisibilidade subjetiva de quem não pode se dar ao luxo de dizer o que realmente pensa a quem paga seu salário, que aparece de forma sutil e mediada por códigos de civilidade nos filmes de Visconti e João Moreira Salles, veio à tona no Brasil como uma golfada de bestialidade nas últimas eleições. Foram mais de 2 mil denúncias de assédio eleitoral, mais de 2 mil queixas de empregados que foram de alguma maneira coagidos a votar no candidato escolhido pelos patrões.
Apesar da dimensão inédita, o fenômeno não chega a ser surpreendente em um país em que a tradição do mandonismo nunca foi abandonada. O que assusta é ver gente defender, em público e sem corar, que a prática é absolutamente legítima: empregados e órgãos de vigilância é que estão errados. O Brasil andou tanto para trás nos últimos quatro anos que acabou redimindo – quem diria – até mesmo o voto de cabresto.