"Uma pessoa é mais parecida com sua época do que com seus pais", diz um velho provérbio árabe citado pelo historiador Marc Bloch no livro O Ofício do Historiador. No caso de Bloch, as circunstâncias históricas se manifestaram de forma trágica: judeu na França ocupada, o historiador foi preso, torturado e morto, em 1944, por sua atuação na Resistência.
A escritora francesa Annie Ernaux gosta de mencionar o provérbio citado por Bloch quando tenta explicar seus próprios livros — o que tem acontecido com ainda mais frequência desde que ganhou o Nobel. Na semana seguinte à premiação, a autora cumpriu dois compromissos em Nova York: conversou com leitores na livraria francesa Albertine e participou das sessões de lançamento do documentário Les Années Super-8, que codirigiu com o filho David Ernaux-Briot. Os dois eventos já estavam com ingressos esgotados antes mesmo do Nobel.
Em livros como O Lugar (1993), A Vergonha (1997), O Acontecimento (2000) e Os Anos (2008), lançados no Brasil pela Editora Fósforo, Annie Ernaux vem lapidando um projeto literário que consiste em narrar as próprias memórias à luz da experiência coletiva. Ao contrário de um herói da Resistência como Marc Bloch, sua biografia não tem nada de particularmente excepcional. Nasceu em uma família de trabalhadores, no Interior, em 1940. Estudou, casou, teve filhos, deu aulas, ascendeu socialmente, começou a escrever. Participou do movimento que levaria à legalização do aborto na França, em 1975, e sempre identificou-se com a esquerda. Nenhuma grande aventura — a não ser a de mergulhar fundo no próprio passado.
O livro mais ambicioso de sua série de relatos memorialísticos é Os Anos, construído com o apoio de seis décadas de diários. A forma como Annie narra episódios que marcaram sua geração (Maio de 68, Vietnã, o movimento feminista, o triunfo do consumismo) destaca a natureza coletiva de ideias e comportamentos que costumamos considerar únicos e particulares: como escolhemos nossos parceiros, criamos nossos filhos, pensamos em sexo, lembramos o passado ou projetamos o futuro. Através de sua prosa contida, quase seca, acompanhamos consensos se formando e se desfazendo, palavras novas surgindo, objetos entrando e saindo das casas, visões de mundo se espalhando e se diluindo.
Ao ler Os Anos, pensei muito no meu próprio passado e em como ele se distingue da experiência das gerações que vieram antes e depois da minha. Também tentei imaginar como, no futuro, vou dar sentido ao que está acontecendo agora — no Brasil e na minha vida. O que não estou vendo hoje que vai me parecer óbvio daqui a 10 anos? Me perguntem em 2032. Espero poder responder.