É difícil decidir o que me incomoda mais no projeto de lei sobre educação domiciliar aprovado na semana passada pela Assembleia Legislativa. A ausência completa de senso de oportunidade em meio a uma emergência sanitária que impôs desafios muito maiores e mais urgentes à educação? O açodamento dos deputados gaúchos em legislar sobre um assunto pouco debatido, pouco entendido e não regulamentado em nível federal? A presteza em colocar-se a serviço dos interesses eleitorais do presidente da República, que definiu o “homeschooling” como sua prioridade legislativa em 2021 para bajular as bases? A jequice do termo “homeschooling”? O fetiche do bolsonarismo em macaquear as pautas da extrema direita americana? As imagens de crianças pequenas carregando cartazes em defesa do seu “direito” de não ir à escola?
O movimento pelo ensino domiciliar começou nos Estados Unidos nos anos 1970. Naquela época, a mobilização pelo direito de educar os filhos em casa não tinha ideologia. Faziam parte do movimento tanto a turma dos libertários, que reivindicam a presença mínima do Estado na sociedade, quanto defensores de reformas na educação e grupos religiosos. A partir dos anos 1980, essa coalizão de oportunidade se desfez e a pauta foi abduzida por grupos empenhados em reproduzir determinados valores morais e religiosos impedindo que as crianças sejam expostas a formas diversas de pensamento e estilos de vida. Em resumo: querem liberdade para tirar a liberdade.
Importado tão às pressas que não deu tempo sequer para traduzir o termo em inglês, o “homeschooling” encontrou no Brasil obstáculos próprios, relacionados com a realidade das famílias brasileiras, a começar pela porteira virtualmente aberta para abusos de todos os tipos. Ou alguém acredita que é possível fiscalizar o que acontece dentro de casa quando pais são alçados à posição de instância única e plenipotenciária na vida dos filhos?
Nos Estados Unidos, como aqui, a pauta da educação domiciliar alcançou uma relevância desproporcional graças à mobilização e à organização de grupos que veem a educação não como uma ferramenta para formar cidadãos e transmitir conhecimento, mas como uma espécie de Bomba H na guerra cultural que abate a democracia ao reduzir todas as diferenças a conflitos entre “nós” e “eles”.
Transformar visões de mundo sectárias em políticas de Estado tem sido o único objetivo realmente claro do governo Bolsonaro até aqui. Ver o Rio Grande do Sul embarcar nesse delírio como o aluno mais bem aplicado da turma é mais um motivo para sofrer pelo nosso apequenamento intelectual e político (exibido todos os dias, com galhardia, na CPI da Covid): viramos o fundão da aula.
O veto do governador é a última chance de o Estado não tomar pau nessa matéria.