Os diários ainda estão por aí. O cadeado agora se chama “senha”, e ninguém precisa providenciar um esconderijo inviolável para proteger seus segredos da curiosidade alheia. O segredo agora é não manter segredos. Conte tudo, nos mínimos detalhes. Extraia do segredo qualquer traço de culpa, embaraço ou vergonha, e é a intimidade preservada que acabará se tornando suspeita.
Os diários de hoje são compartilhados com todo o círculo social: amigos ou quase, mas também pais, tios, primos, professores, vizinhos e sobreviventes de eras esquecidas – além daquele pelotão de desconhecidos que sempre nos cumprimentam no aniversário, embora pareçam bastante conformados com o fato de não nos conhecerem pessoalmente.
Nem todo mundo abastece suas redes sociais com o mesmo tom confessional usado naqueles velhos cadernos escondidos embaixo do colchão, mas um dos objetivos do diário, congelar o tempo para que possamos revisitar nossas versões anteriores de vez em quando, acaba sendo alcançado do mesmo jeito. Plataformas como o Facebook provocam esse efeito periodicamente, sem serem solicitadas, enviando imagens de cinco ou 10 anos atrás para nossa permanente reavaliação do passado. Outras dependem de um pequeno esforço de pesquisa, mas o resultado é parecido: lá está você, um outro você, mais ou menos feliz, mais ou menos próximo, tornando a distância entre um e outro mais evidente e a percepção da passagem do tempo mais aguda.
Mantive, ou tentei manter, um pequeno diário no início da adolescência. Gostava de escrever e de guardar, mas era profundamente afetada pela dissonância entre o projeto e o resultado final no papel – o que talvez explique por que poucas dessas memórias sobreviveram à fúria do meu senso crítico em botão. Numa dessas páginas soltas, uma menina de 12 anos sonha em ganhar a vida escrevendo, mas sente vergonha do “português empapado” que lhe sai da caneta bic, à revelia.
Em vez de constrangimento, essas folhas soltas me causam agora uma ternura infinita, materna. Hoje entendo que o esforço de escrever costuma vir acompanhado da descoberta de que a linguagem pode ser esquiva, insuficiente ou, pior, petrificada (“Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã”, admitia Drummond, ele próprio, o lutador peso-pesado). Lamento que o diário tenha sido quase todo destruído, mas valorizo a luta e mesmo a eventual frustração. Sou as folhas que ficaram – e as que ainda vão ser escritas.