Erico Verissimo almoçava no refeitório da Universidade de Berkeley quando se viu cercado por alguns dos mais importantes cientistas de sua época – entre eles E. O. Lawrence, Nobel de Física de 1939. Cruz-altense discreto e avesso a bravatas, Erico ficou impressionado com a ausência de pose de Lawrence e de seus companheiros notáveis, todos com a mesma atitude desafetada que contrastava com a posição de destaque que desfrutavam.
O episódio é narrado no livro A Volta do Gato Preto (1946), relato dos dois anos em que Erico morou na Califórnia com a família. "Fico a pensar em certos homens presunçosos de minha terra, os quais só porque têm fortuna, posição ou algum parente importante julgam que são o sal da terra e vivem a perguntar: – Você sabe com quem está falando?", anotou Erico em seu caderno de viagens.
Em contraponto ao nosso "você sabe com quem está falando?", Erico observou o que costumava acontecer nos EUA quando algum tipo de maioral (rico, famoso ou apenas habituado a privilégios) tentava furar uma fila ou dar de bacana para cima de uma autoridade. "Àqueles que se julgam com superioridade suficiente para poderem passar à frente dos outros na alfândega ou no carro-restaurante, o americano dirá: Quem você julga que é? (Who do you think you are?) e obrigá-lo-á a ocupar seu lugar". O carteiraço, notou Erico, não cola tão facilmente em um país que se orgulha de ter se livrado da aristocracia há quase 250 anos.
As observações de Erico são citadas no já clássico ensaio Sabe com Quem Está Falando? (1978), do antropólogo Roberto da Matta, que investiga as origens do nosso fetiche pela hierarquia social. O empresário de Alphaville que desacatou um policial ("Você é um merda que ganha R$ 1 mil por mês, eu ganho R$ 300 mil."), o casal que ofendeu um fiscal ("Cidadão, não. Engenheiro civil, formado. Melhor do que você."), o desembargador que recusou uma multa e humilhou um guarda ("Amassei e joguei na cara dele. Você quer que eu jogue na sua também?") não são aves raras na nossa fauna. Pelo contrário. Todos trazemos as marcas do nosso "Antigo Regime de havaianas" muito mais internalizadas do que gostaríamos.
Somos herdeiros de barões, marquesas e viscondes de araque de um reino que tinha vergonha do trabalho, orgulho da nomeada e desprezo profundo pela plebe (escravos e homens livres pobres) – e o fato é que ninguém se livra dessa herança maldita sem esforço consciente e permanente. Atire a primeira pedra quem nunca utilizou status, profissão, estudo, beleza, força, inteligência, origem familiar ou mera proximidade do poder para ciscar no ninho de algum tipo de privilégio. Se não lembrou de nada, ou você é recém-nascido, ou sua memória pode não ser tão boa assim.