Como os filmes de terror mais escatológicos, a série Em Nome de Deus embrulha o estômago. Ao longo dos seis episódios, o espectador sente nojo, raiva, indignação e um mal-estar que não termina quando o documentário acaba. Ainda assim, a série da Globoplay é obrigatória.
A investigação dos abusos sexuais cometidos ao longo de quase 40 anos por um homem que explorava a fé e a fragilidade de suas vítimas é apenas um dos aspectos da história. Tanto quanto as mais de 300 denúncias que vieram a público depois de uma reportagem exibida no programa Conversa com Bial, em 2018, o que choca na trajetória de João Teixeira de Faria, atualmente em prisão domiciliar, é o fato de este homem ter permanecido tanto tempo sem ser incomodado. É como se parte do país, inclusive a Justiça, que varreu denúncias anteriores para baixo do tapete, a imprensa, que nunca investigou a fundo o que acontecia em Abadiânia, políticos e celebridades, que cediam sua fama para legitimar o charlatanismo, estivesse hipnotizada, amedrontada ou com preguiça de pensar.
As vítimas de João de Deus não são apenas as mulheres e meninas que foram estupradas, mas todos aqueles que pararam de fazer tratamentos de saúde por ordem do curandeiro ou foram submetidos a intervenções criminosas. Não por acaso, os hospitais da região estavam acostumados a receber pacientes que saíam da Casa Dom Inácio de Loyola para morrer em outro lugar. A série revela ainda o lado mafioso do charlatão. As armas, o dinheiro escondido em alçapões, os negócios escusos, os capangas que extorquiam o comércio local. Para os gaúchos, o penúltimo episódio, sobre a filial em Três Coroas onde João de Deus atendeu entre 2007 e 2012, tem interesse especial. Spoiler: a casa parou de funcionar quando a filha menor de idade de um dos diretores do centro também foi abusada.
Ninguém comete tantos crimes em um período tão longo de tempo sem a cumplicidade e a complacência de muita gente. Mais do que a inclinação nacional para acreditar em falsos profetas e salvadores da pátria, o fenômeno João de Deus revela o que acontece quando a exploração da fé, o poder e a bandidagem se aliam. Qualquer semelhança com outros personagens da vida nacional é uma tragédia, não uma coincidência.