O fim do ano está chegando e com ele a obrigação de encarar reuniões familiares nem sempre tão doces quanto um panetone com cobertura de fios de ovos.
Nenhuma família é uma Disney, mas algumas são como um filme de terror dos anos 50, com esqueletos de mágoas do passado sempre prontos a assombrar os vivos ao menor sinal de tensão no ar. Os pretextos podem ser graves ou tolos: política, futebol, celular, modos à mesa … Quando um quer, um briga.
Todos conhecem alguém que usa o confronto como modo padrão de operação. Nada passa despercebido, nada se releva, nada se perdoa. Na dúvida: cascudo, chute nas canelas, tapa na orelha (na melhor das hipóteses, metafóricos...). Ninguém está livre, claro, de perder a calma de vez em quando, mas a maioria das pessoas, se pudesse escolher, não gostaria de viver todos os dias de sua vida como se estivesse em uma eterna noite de Natal malsucedida, cercado por pessoas intratáveis que reclamam de tudo e puxam briga até com a sombra do Papai Noel – principalmente se ele estiver de vermelho.
Em 2019, muitos brasileiros sentiram-se como se estivessem presos na festa de Natal de um tio sem modos que conta piadas escatológicas e coloca o som no volume mais alto para implicar com os vizinhos e mostrar que é ele quem manda "nisso tudo daí". A democracia brasileira, com seus poucos altos e muitos baixos, nunca viu um presidente eleito que defende a tortura, um ministro da educação que odeia estudantes, um secretário de Cultura que odeia artistas, um assessor para assuntos afro-brasileiros que odeia o movimento negro, um ministro do meio ambiente que odeia ecologistas.
O espírito rixoso é uma inclinação geral para as picuinhas, os revides irrefletidos e os confrontos por motivos banais
Examinando como se comportam os personagens do livro Memórias de um Sargento de Milícias (1853), o crítico literário Edu Otsuka cunhou uma expressão que combina muito bem com o ambiente de enfrentamento permanente cultivado por boa parte dos membros do governo Bolsonaro: "espírito rixoso", que pode ser definido como uma inclinação geral para os confrontos por motivos fúteis ou banais, os revides irrefletidos, as picuinhas. "A rixa contrasta com a atitude sóbria, contida, racional e realista normalizada na sociedade burguesa", afirma Otsuka, que identifica nos impulsos agressivos dos personagens do romance o reflexo de uma sociedade atrasada (o Brasil do século 19) em que estão ausentes outros tipos de mediação.
No século 21, o espírito rixoso encontrou um caldo de cultura perfeito no ambiente de lacração das redes sociais, mas só masoquistas ficariam felizes ao topar com esse tipo de assombração, ao vivo, na festa de Natal. Ou, pior, decidindo o futuro do país.