
Você é ateu e tem a chance de conversar com o papa Francisco por alguns minutos. Podendo abordar qualquer assunto, o que teria gostado de perguntar?
O escritor espanhol Javier Cercas já estava com a pergunta na ponta da língua quando teve a oportunidade de sentar-se ao lado do papa no avião que os levaria para a Mongólia (3 milhões de habitantes, 1,5 mil católicos), em agosto de 2023. Alguns meses antes, Cercas havia recebido do Vaticano um convite inédito e difícil de recusar: participar da primeira viagem de um papa ao país de maioria budista, com liberdade total para escrever o que quisesse e acesso franqueado ao entorno do pontífice. O resultado é O Louco de Deus no Fim do Mundo, lançado na Espanha poucos dias antes da morte de Francisco e com publicação no Brasil prevista para setembro.
Cercas produziu um diário de viagem que é também uma espécie de biografia não convencional de Jorge Mario Bergoglio (é de esquerda ou de direita? humilde ou ambicioso? apaziguado ou atormentado por todo tipo de dúvidas? que marca deixará no Vaticano?), além de uma reflexão sobre a Igreja Católica e seu “amálgama inextricável de maldades e bondades”.
Escrito com as ferramentas narrativas de um romance de autoficção (ou seja, com a subjetividade do autor sempre muito presente), o livro pode ser lido com prazer por loucos com ou sem Deus no coração. Ainda que o ponto de vista seja o de um autor ateu, há uma curiosidade genuína na maneira como ele se aproxima dos temas religiosos, o que instala a obra no terreno quase fantástico, nos dias de hoje, do diálogo e da tolerância. Assim como expõe as fragilidades morais da instituição e as ambiguidades da fé, Cercas se deixa comover pelo trabalho de missionários que dão à expressão misericórdia o sentido mais humano que a palavra pode alcançar.
A pergunta que o escritor decide fazer ao papa no avião, e que se torna o eixo de sua investigação, não é sobre política ou sobre os rumos da Igreja Católica no século 21. Cercas pergunta a Francisco se a mãe, católica devota que acredita na ressurreição da carne e na vida eterna, vai mesmo se juntar ao marido quando morrer, como ela supõe. Seu objetivo não é contestar o dogma da igreja ou apanhar Francisco em algum tipo de contradição, mas transmitir a mensagem à mãe, de 92 anos, quase como um presente que se dá a alguém que se ama, compartilhando-se ou não dos mesmos gostos e inclinações.
O interesse do livro está menos na resposta do papa, que não surpreende ninguém, mas na disposição do autor de fazer a pergunta. Por amor.