
Há pouco mais de 60 anos, no auge da Guerra Fria e da corrida armamentista, Stanley Kubrick imaginou o que aconteceria se um lunático que espalha (e acredita em) teorias conspiratórias tivesse acesso ao botão que daria início à terceira — e última — guerra mundial. O filme, Dr. Fantástico (1964), aparece desde então em qualquer lista das melhores comédias de todos os tempos, apesar de não haver assunto mais sério do que a fragilidade da paz em um planeta com os nervos sempre à flor da pele. (Antes de o filme começar, a título de esclarecimento, lemos uma nota da Força Aérea Americana garantindo que ataques acidentais com armas nucleares são altamente improváveis. Ok, general, fiquei bem mais calma agora que só preciso me preocupar com um fim do mundo planejado nos mínimos detalhes e de forma absolutamente racional.)
Uma cena em especial ganhou uma atualidade inesperada nos últimos meses. À certa altura, o general surtado Jack D. Ripper (algo como Jack, o estripador) explana sua teoria abilolada de que a adição de flúor na água, que começou nos EUA logo depois da II Guerra e no Brasil em 1974, nada mais é do que uma maquinação dos comunistas para enfraquecer os “fluidos corporais” (especialmente os masculinos) dos americanos.
Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde da administração Trump, não chega a acreditar em uma conspiração comunista contra a machulência local (acho), mas, além de ser contra vacinas, lidera o movimento que quer acabar com a fluoretação da água, afirmando, sem comprovação científica consistente, que a prática está afetando a inteligência das crianças. Em março, Utah tornou-se o primeiro Estado americano a proibir a adição de flúor na água, e a Flórida deve seguir o exemplo em breve. Enquanto isso, no Canadá, a cidade de Calgary, que abandonou a fluoretação há alguns anos, decidiu voltar atrás, preocupada com o aumento do número de cáries nas crianças, principalmente as mais pobres.
Há muitos estudos comprovando que o uso de pequenas doses de flúor na água tem um enorme impacto na saúde bucal da população. Mas o flúor, como qualquer substância, também pode fazer mal se usado em quantidades excessivas. O problema não é debater seu uso, mas transformar mais um tema de saúde pública em futrica política, fake news e teorias conspiratórias. No final das contas, talvez o mundo não acabe com a explosão da “máquina do juízo final”, como em Dr. Fantástico, mas com microdoses de mentira sendo espalhadas todos os dias na atmosfera até ela se tornar irrespirável.