Minha primeira amiga. A palavra nem sequer existia no meu vocabulário antes que ela viesse estabelecer seu escopo e sentido inaugural: rir de piadas que só a gente entendia, contar e guardar segredos, investigar em conjunto os mistérios que, aos oito anos, nos pareciam insondáveis – ou seja, quase tudo. Falar muito, discutir às vezes, brincar, ver e ser vista com atenção. Amar por escolha e não por destino.
Na adolescência, muita gente perguntava se éramos irmãs – companheira (ou rival) que nenhuma das duas tinha em casa. Éramos parecidas, mas ela era a mais bonita, a mais sociável, a mais inquieta. Eu era a guria de óculos que gostava de ler, odiava horóscopo (que ela amava) e sabia inventar roteiros para o futuro brilhante que teríamos em lugares de nomes sugestivos como Antuérpia ou Kuala Lumpur.
Nossas diferenças, somadas a nossas afinidades, eram nossa fortaleza e nossa vaidade. Éramos um time imbatível, uma banda com dois integrantes principais e muitos músicos convidados. Lennon e McCartney de franjinhas.
No início da nossa vida adulta, a banda se separou. Aos 20 anos, é preciso ter liberdade para se contradizer, se reinventar, mudar de pele, e a amiga de infância guarda a nostalgia de uma identidade que pode não ser a que escolhemos levar para a vida adulta. A velha amiga não se deixa enganar por nenhuma pose ou truque de cena. Cobra coerência e exige fidelidade a algo que muitas vezes não existe mais – não apenas porque a amizade mudou, mas porque vocês já não são as mesmas meninas que liam Monteiro Lobato e os pensamentos uma da outra com a mesma facilidade. Seguimos carreiras solo, mas nunca nos perdemos de vista.
Há alguns dias, minha primeira amiga me ligou para falar sobre o tratamento contra o câncer – os incômodos, a dificuldade para conseguir remédios... – e tudo isso é muito injusto, porque é da natureza do câncer ser injusto. Tumores não analisam o caráter de ninguém, não se interessam em saber se a pessoa tem planos, se gosta de crianças, se cuida de um jardim, se ouve samba. O câncer, como outros tipos de injustiça, apenas surge como um caminhão desgovernado na rua em que você está passando, distraído, pensando em problemas que parecem apenas ridículos no dia seguinte.
Diante de qualquer injustiça, é preciso reagir, tomar providências, checar a conta bancária, fazer ligações – mesmo quando a dor, o medo e a revolta parecem conspirar contra tudo o que é prático e sensato. É nessa hora, quando todas as peças do quebra-cabeça que é uma vida parecem se perder umas das outras, que os amigos de verdade surgem para tentar colocar as coisas em seu lugar. Vão aparecendo sem alarde, um depois do outro, oferecendo fatias do seu tempo, da sua atenção, do seu carinho, da sua força.
Neste momento, gostaria de ser a melhor amiga de todas. A dos superpoderes, a do pó de pirlimpimpim, a que fazia planos de fuga para a Antuérpia. Infelizmente, sou só a amiga possível, a menina de óculos que gosta de ler e de escrever. A que lembra de tudo – e agradece. A que acredita que todos os amores de verdade, contra os efeitos do tempo e qualquer evidência em contrário, sempre duram para sempre.