O excruciante percurso de uma derrocada – da glória à miséria, da honra à desgraça, do sublime ao patético. É dessa matéria viva e incandescente que são forjadas as grandes tragédias. O homem supostamente honesto que arranca os olhos ao se dar conta dos crimes que cometeu (Édipo), o herói levado pelo ciúme que acaba estrangulando o grande amor de sua vida (Otelo), o velho rei tolo que termina os dias desamparado e só (Lear).
Não espanta que Shakespeare e os gregos ainda sejam lidos nos dias de hoje. Séculos depois de terem sido criadas, essas histórias ainda nos dizem respeito – assim como as tragédias reais que são escritas todos os dias. Mesmo redigidas para consumo imediato e não para a posteridade, as notícias sobre grandes infortúnios são sempre as que mais atraem atenção nos jornais. O drama do pobre-diabo que nasceu e morreu desvalido, porém, em geral desperta menos interesse do que o do homem poderoso que não apenas decaiu ao nível dos mortais comuns, mas desceu ainda mais baixo – alcançando o plano em que a inveja ou a admiração são substituídas pelo desprezo ou pela piedade.
Nos últimos tempos, histórias desse tipo têm se tornado frequentes no noticiário. Na arena política brasileira, porque nunca tantos empresários e políticos foram obrigados a conhecer o lado de dentro de uma cela de cadeia. (Até o fechamento desta edição, três ex-governadores do Rio de Janeiro estavam atrás das grades: Sergio Cabral e o casal Anthony e Rosinha Garotinho.) No showbiz, a sequência de denúncias de assédio sexual que tem atingido grandes nomes da indústria do entretenimento esmaga carreiras e afeta, de alguma forma, também o público. (No momento, duas séries consideram matar seus protagonistas, House of Cards e Transparent, na tentativa de evitar a contaminação dos shows com a má fama dos atores Kevin Spacey e Jeffrey Tambor.)
Longe dos escândalos políticos ou sexuais, João Gilberto, aos 86 anos, vive sua tragédia particular encenando uma versão contemporânea de Rei Lear – o velho que se aproxima da morte tendo perdido não apenas o próprio reino, mas a habilidade de identificar as pessoas a sua volta que merecem confiança.
O gênio musical reverenciado no mundo todo há quase 60 anos e o homem frágil, falido e acuado que já não é dono nem sequer da própria música ilustram o sublime e o patético que pode comportar a experiência humana – o que faz do pai da Bossa Nova um personagem trágico por excelência. "João Gilberto tinha como ambição apenas parar o mundo para exercer sua arte. Diante do microfone, conseguiu. Fora do palco, foi o contrário – nunca teve controle sobre sua vida. Habituou-se a delegá-la a outros, na esperança de que ela mantivesse distância de seu apartamento, de seu quarto e de seu pijama", escreveu o biógrafo Ruy Castro na semana que passou.
Trajetórias melancólicas como a de João Gilberto parecem acender nossa fantasia muito mais do que as histórias de fama repentina. Como se parte de nós achasse mais urgente nos alertar sobre os riscos do desastre do que nos preparar para a glória. Faz sentido. Todo mundo está pronto para a circunstância eventual do sucesso, mas a espécie humana não se tornou a dona do planeta porque sabia aproveitar a felicidade e sim pela capacidade de prever os perigos à frente e agir para evitá-los.
As tragédias, além de catárticas, são didáticas. Elas nos ensinam que ninguém chega tão alto que não possa ser derrubado, de uma hora para outra, pelo sopro imprevisível de um revés.