Ao contrário de Belchior, o homem que caiu no mundo para fugir do passado, João Gilberto refugia-se do mundo dentro de si mesmo. Um autoexílio de uma vida inteira no único esconderijo onde ninguém pode encontrá-lo. É lá que passa manhãs, tardes e noites, um confortável recanto medindo 1,73 metro de voz baiana, cabelos ralos, gestos lentos e memórias afetivas acionadas por horas seguidas de violão no colo.
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O mais perto que os indesejados chegam de sua paz é por telefone. João nunca atende, mas o telefone toca e seu tocar faz com que o som reverbere pelo apartamento, transpasse os tímpanos e atinja o cérebro. É o máximo que um estranho participa de sua vida, produzindo ruído em um dos sistemas auditivos mais seletivos do mundo, que só termina depois da sétima badalada, quando a invejável secretária virtual de João Gilberto atende cheia de ironia fina: "Essa caixa postal está cheia, tente chamar este número mais tarde. Obrigada por ligar para a Tim".
As tentativas de se tirar João Gilberto do lugar não deram tão certo. Como se traslados externos chacoalhassem suas estruturas emocionais, ele prefere voltar a Juazeiro, que encontra nos 140 m² de um apartamento no Leblon. Depois de passar uma temporada de poucos meses no Copacabana Palace, no início de 2015, ele voltou à caserna de onde, dizem os fomentadores de mito, um gato já se atirou por não suportar ouvir João ensaiando O Pato. Bebel Gilberto, sua filha, tentou recentemente alugar um outro apartamento de maior conforto para o pai, também no Leblon, mas ele se negou a arrumar as malas mais uma vez.
O mito de João tem a força de blindá-lo. A maioria dos amigos não sabe nada sobre ele e, quem sabe, reafirma sua fidelidade no silêncio. "Meu caro, não tenho notícias dele há tempos", diz Nelson Motta, do restrito anel dos confiáveis. Claudia Faissol, jornalista com quem João tem uma filha, é desconfiada e também não se pronuncia. "Mande um e-mail que te respondo daqui a pouco", diz, prometendo algo que jamais vai cumprir. Porteiros e vizinhos parecem viver sob um pacto de silêncio.
Aos 85 anos, João Gilberto não deve mais fazer shows e, com exceção do álbum João, voz e violão, de 2000, nenhum outro de seus 16 discos gravados com esmero está em catálogo nas lojas do Brasil. Pior que o exílio físico é o artístico. Enquanto seus advogados travam há anos na Justiça uma guerra de muitas batalhas contra a administração de seu material pela EMI, adquirida pela Universal, João segue sem previsão de lançar discos por companhias ou de forma independente. É mais fácil encontrar seus álbuns reeditados no Japão ou na França. Juazeiro da Bahia, onde ele nasceu, vai festejar seu filho mais ilustre, como faz todos os anos. Mas o apartamento de João estará hoje tomado apenas pelo violão. "Ele não gosta de festa", diz a ex-mulher Miúcha. E, quem sabe, por uma rara interferência do mundo externo. "Vou levar seu jornal para ele ver. Se ele gostar, eu aviso".
Texto de Julio Maria